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sexta-feira, 30 de abril de 2010

ARTIGO 163 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ 11 (ANO I, Nº 17. DE 21 A 30 DE MAIO DE 2010).

Misérias e Glórias do Xadrez - 11.
Carlos Batista Lopes,

Página inicial.


Nosso relato da trama que permitiu a Fischer enfrentar Spassky não tem, evidentemente, o objetivo de negar que ele fosse - e, provavelmente, ainda seja - um grande enxadrista, dos maiores que já existiram. Porém, as regras têm de valer até para os melhores – mesmo para o melhor do mundo. Aliás, sobretudo para este. Caso contrário, instaura-se o vale-tudo e, se nos permitem as senhoras e senhoritas que nos lêem, segue-se o popular pega-pra-capar.

O atropelo das regras, por razões puramente políticas, extra-enxadrísticas, para colocar Fischer como candidato ao título foi mais um prego no caixão da estrutura estabelecida após a morte de Alekhine, em 1946. Naturalmente, era possível aperfeiçoar e mesmo mudar, se fosse necessário, aquela organização, desenhada fundamentalmente por Botvinnik. Desde que fosse para outra. Mas o rumo a partir do final da década de 50 não levava a outra estrutura, fosse melhor ou pior – levava a nenhuma, como ficou claro em 1993, quando Kasparov resolveu passar por cima, não mais das regras, mas da própria FIDE, com as conseqüências que até hoje não foram inteiramente superadas.

É necessário ressaltar, porém, que a anarquia implantada nos anos 90 – que tem relação direta com aquilo que se chama “a anarquia do mercado” - só foi possível porque a FIDE havia, no correr dos anos, atingido um grau de desmoralização que lhe tornou impossível resistir ao ataque daqueles a quem ela havia cedido paulatinamente durante 35 anos: basicamente, a cúpula e a mídia dos países centrais, que agora sustentavam Kasparov contra a FIDE.

O atropelo dos anos 70 foi, portanto, um prego no caixão da própria FIDE – que somente a partir de 2005, com o Torneio de San Luís, conseguiu algum sucesso em suas manobras de ressuscitação.

A semente desse estado de caos e desmoralização havia sido plantada pelas interferências em função da mal chamada “guerra fria” - facilitadas pela defensiva dos soviéticos, a chamada política de apaziguamento, inaugurada por Kruschev. Porém, esta semente não conseguiu cair em solo fértil logo no início do plantio. Pelo contrário, para isso foram necessários mais de 30 anos de adubagem – começando pela revogação do direito ao match-revanche, pela abolição do torneio de candidatos e, com destaque, para a forma como Fischer chegou a campeão mundial.

KISSINGER

No artigo de Al Lawrence que já mencionamos, um dos relatos mais importantes de Leroy Dubeck, presidente da Federação de Xadrez dos EUA (USFC) de 1969 a 1972, é o de que “foi um telefonema do Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Nixon, Henry Kissinger, que colocou Fischer em posição de sentido. ‘O Dr. Kissinger disse a Bobby que ele devia derrotar os russos pela América’, disse Dubeck. ‘A face de Fischer foi subitamente tomada por um olhar de determinação, como se ele estivesse indo para uma batalha’. Bobby seguiu para cumprir sua missão” (cf., Al Lawrence, “Fischer: fame to fallout”, Chess Life Magazine, 09/2007).

Não é muito difícil, diante disso, compreender o ressentimento atual de Fischer com os EUA, depois que seus bens – inclusive os direitos autorais de seus livros – foram confiscados e sua prisão foi decretada pelo governo americano por ter rompido o bloqueio à Iugoslávia, medidas totalmente ilegais, baseadas apenas numa “ordem executiva” de Bush, o pai. Fischer, aliás, tem bastante razão quando diz que, antes que vencesse o match pelo campeonato do mundo, os EUA eram conhecidos como “um país do baseball ou do futebol americano”, esportes, digamos assim, de prestígio intelectual menor do que o xadrez. Para ser rigoroso, de prestígio, inclusive intelectual, menor do que o futebol que nós criamos a partir do que antes era o “rude esporte bretão”...

Lawrence localiza o telefonema de Kissinger nos momentos que antecederam a ida de Fischer para Reikjavik, onde foi o match com Spassky. E, pela forma como conta a história (“a face de Fischer”, etc.), Dubeck estava presente. No entanto, no relato deste, não há menção ao momento desse telefonema.

Certamente, as coisas podem ter acontecido do modo como diz Lawrence. Mas não é provável que isto seja tudo. Havia, sem dúvida, dificuldades de última hora, colocadas por Fischer, para viajar à Islândia. Mas, nesse momento, Fischer já havia vencido o Interzonal de Palma de Mallorca, já havia batido, por um placar inédito (6 a 0), dois outros candidatos a desafiante (Taimanov e Larsen), já havia derrotado Petrosian, último concorrente no seu caminho para chegar ao match com o campeão – e, para completar, Spassky já havia, no Torneio Memorial Alekhine, que os soviéticos, desastradamente, organizaram para sua preparação, chegado em sexto lugar. Não havia outro momento melhor para que ele chegasse a campeão do mundo.

Kissinger pode muito bem haver telefonado nesse momento, e deve tê-lo feito. Mas dificilmente foi o seu primeiro contato com a questão – e, de resto, com Fischer. Até porque suas funções como “conselheiro de segurança nacional” eram, sobretudo, as de coordenação da CIA e outros aparelhos semelhantes, como se tornou evidente um ano depois, no sanguinário golpe contra o presidente Allende, no Chile. Seja como for, sua interferência é a hipótese mais provável para a mudança de Fischer após o campeonato dos EUA, sua súbita decisão de aceitar as irregulares gestões para colocá-lo no Interzonal de Palma de Mallorca.

Nos detivemos especificamente nessa questão porque os telefonemas de Kissinger, recentemente, foram matéria de polêmica, depois do lançamento de “Bobby Fischer Goes to War”, dos ingleses David Edmonds e John Eidinow, em 2004. O livro é bem característico de certo tipo de jornalistas – não necessariamente ingleses ou norte-americanos: um pires de superficialidade com uma coleção de preconceitos anticomunistas. Entretanto, mesmo para essa espécie de obra, os dois autores são muito exagerados: até mesmo o “Washington Post”, numa resenha assinada por Andrew Meier, não conseguiu deixar de, pelo menos de passagem, registrá-lo.

A documentação de “Bobby Fischer Goes to War” é bastante débil. Por exemplo, a KGB é acusada de cobras e lagartos, sem que nenhum documento dos seus arquivos (abertos desde 1992, portanto, 12 anos antes da publicação do livro) seja sequer mencionado. Mas, no livro, são relatados dois telefonemas de Kissinger para Fischer. Um deles antes da viagem para Reikjavik, que parece ser o mesmo citado por Dubeck, e outro depois da segunda partida do match – à qual Fischer, derrotado na primeira partida, não compareceu, arriscando-se a ser desclassificado, não fosse a complacência infinita da FIDE. Quantos outros telefonemas ou contatos do governo americano com Fischer houve nessa época, é questão que ainda não é clara.

Totalmente claro é que o coronel Ed Edmonson se transformou num verdadeiro controlador de Fischer nessa época. Quando não conseguia controlar, como nos dois casos citados, apelava para instâncias mais acima.

TURBILHÃO

Fischer venceu o Interzonal de Palma de Mallorca com 18,5 pontos, uma diferença excepcional de 3,5 pontos em relação aos segundos colocados - o dinamarquês Bent Larsen, o soviético Efim Geller e o alemão ocidental Robert Hubner. Além desses, saíram classificados do Interzonal, para disputar os matches com os candidatos já pré-classificados (Petrosian e Korchnoi), o soviético Mark Taimanov e o alemão oriental Wolfgang Uhlmann. A única derrota de Fischer havia sido para Larsen, durante a nona rodada. Como a maioria dos jogadores estratégicos (“posicionais”), como Capablanca ou Botvinnik, Fischer podia ser surpreendido, numa partida de torneio, por um jogador tático, como Larsen. Num match, este não perderia por esperar...

Esse resultado de Fischer seria apagado da memória de todos apenas cinco meses depois, quando, no match das quartas de final, derrotou o GM soviético Mark Taimanov por 6 a 0 (ou seja, num match previsto para 10 partidas, venceu seis partidas seguidas, sem nenhum empate e sem nenhuma derrota), um resultado completamente espetacular em confrontos entre Grandes Mestres.

Taimanov, também um grande pianista clássico, não tinha, até pela idade – 45 anos – condição de enfrentar Fischer num match. Na verdade, seu auge havia sido na década de 50. O fato de ter saído do Interzonal como um dos candidatos soviéticos, demonstra, mais uma vez, os problemas de renovação que o xadrez da URSS enfrentava na época.

O próprio Taimanov, ao descrever a terceira – e decisiva – partida do match, fornece uma descrição das dificuldades, e, antes de tudo, da intimidação dos jogadores soviéticos diante de Fischer: “O terrível sentimento de que eu estava jogando contra uma máquina que nunca cometia qualquer erro quebrou minha resistência. Fischer jamais permitia alguma debilidade em sua posição, ele era um defensor incrivelmente tenaz. (....) Depois de uma bela seqüência tática, coloquei meu oponente diante de sérios problemas. Numa posição que eu considerei ganhadora, não pude achar um caminho para romper suas defesas. Para cada idéia promissora, eu achava uma resposta para Fischer. Fiquei profundamente absorvido em pensamentos, que não produziram resultado positivo algum. Frustrado e exausto, eu evitei a linha crítica no final e perdi o fio do jogo, o que, em conseqüência, levou à minha derrota. Dez anos depois, pelo menos eu descobri como poderia ter vencido esse jogo fatal, mas, infelizmente, isso não tinha mais nenhuma importância” (entrevista de Taimanov ao GM francês Joel Lautier, Chessbase, 23/05/2002 – NOTA para os não enxadristas: “linha crítica” é aquela na qual, teoricamente, os dois lados realizam as melhores jogadas possíveis em cada posição que surge).

Fischer, havia muito, respondera a essa acusação (feita pela primeira vez, num acesso de ranzinzice, por Botvinnik) do seu jeito: “Não sou uma máquina. Sou apenas um homem, mas um homem extraordinário”.

Mas ele era um jogador muito preciso – Taimanov ressalta, corretamente, seus méritos como defensor, quando, geralmente, ele é conhecido como um jogador de ataque. No entanto, Fischer se arriscava pouco – como Capablanca, com quem foi comparado por Spassky, ele gostava de posições claras e seqüências rigorosamente lógicas.

Fischer tinha, porém, como todo jogador, seu calcanhar de Aquiles: as posições incertas, em que é difícil calcular as seqüências de jogadas e avaliar as posições que sairão delas. Ao contrário de Tahl - e, inclusive, de Smyslov - a intuição jamais foi a sua praia. O problema, como na época de Capablanca, é que havia muito poucos jogadores no mundo que conseguiam criar posições “incertas” jogando contra Fischer. Um deles, o citado Mikhail Tahl, não era candidato ao título (acometido por seus problemas de saúde, ficara em 15º lugar no campeonato soviético de 1969, não conseguindo vaga para o Interzonal). Mas havia outro que já demonstrara essa capacidade: Boris Spassky, o campeão mundial, detentor de um retrospecto de três vitórias, dois empates e nenhuma derrota contra Fischer.

LARSEN

Embora isso não tenha sido enfatizado na época, era evidente que o sistema de matches favorecia Fischer, assim como o antigo sistema, o Torneio de Candidatos, era-lhe menos favorável. Não pelas razões que Fischer havia apontado em 1962. Enfrentar um só jogador várias vezes seguidas, para uma mente como a de Fischer, capaz de um vasto conhecimento das partidas do oponente, mas com repertório de aberturas razoavelmente restrito - ainda que alcançasse profundidade incomum em cada uma de suas linhas favoritas -, era um terreno mais fácil do que enfrentar oponentes diferentes a cada dia, com suas distinções de estilo e várias especialidades. O que não quer dizer que ele não pudesse, no início dos anos 70, sair vencedor num torneio de candidatos. Mas não deixa de ser verdade, por outro lado, que para jogadores mais velhos os matches são particularmente desgastantes.

Nos outros matches das quartas de final, Korchnoi venceu Geller, Larsen venceu Uhlmann e o ex-campeão Tigran Petrosian venceu Hubner. Nas semifinais, enfrentar-se-iam Fischer contra Larsen e Petrosian contra Korchnoi.

Muito poucos jogadores na história conseguiram os resultados de Bent Larsen: quatro vezes candidato a desafiante do campeão, Larsen foi primeiro colocado em três Torneios Interzonais (Amsterdã, em 1964; Sousse, em 1967; e, depois dos acontecimentos que estamos relatando, Biel, em 1976). Com exceção do próprio Fischer, ele era o mais forte jogador ocidental. Apesar disso, sua escolha de linhas pouco comuns – e, sobretudo, duvidosas – assim como seu retrospecto contra Fischer (5 derrotas, 2 vitórias e 1 empate), não prometiam uma surpresa contra o norte-americano.

Porém, assim mesmo, houve uma surpresa: o que se viu foi um massacre, o segundo em poucos meses. Fischer venceu outra vez por 6 a 0. Aqui, permitam-nos os leitores emitir uma opinião, sem dúvida discutível: Larsen nunca foi um jogador sólido, o que, do nosso ponto de vista, é uma função da profundidade do pensamento. A escolha excêntrica de aberturas escondia – ou, talvez, expunha – essa falta de profundidade.

Certas escolhas de Larsen mostram um evidente decolamento da realidade. Um fenômeno, aliás, ao qual ele nunca foi estranho – basta ver suas explicações para a derrota, em que, parece, ele acredita que o culpado foi o clima de Denver, onde se realizou o match (“Os organizadores escolheram a época [do ano] errada para esse match. Eu estava lânguido com o calor e Fischer estava melhor preparado para tais circunstâncias...”) ou sua subestimação de Capablanca (“apenas jogava bem xadrez. E daí?”), que mostra o quanto ele não conseguia se desligar do meramente espetaculoso.

PETROSIAN

Petrosian era um jogador de qualidade diferente de Taimanov e Larsen. Não por acaso – e contra um suposto favoritismo de Korchnoi – havia chegado ao match final dos candidatos. É verdade que já havia conquistado em xadrez todas as glórias possíveis. Exceto, naturalmente, ser campeão por uma terceira vez. Mas essa ambição, em si, parece jamais tê-lo mobilizado. Apesar disso, estava na final e seria um oponente mais difícil para Fischer do que qualquer um dos anteriores.

Logo na primeira partida, Petrosian refutou uma das linhas favoritas de Fischer, seguindo um estudo realizado por jogadores soviéticos, e ficou claramente melhor no tabuleiro. Foi então que aconteceu um fato único nos campeonatos mundiais: as luzes do Teatro General San Martín, em Buenos Aires, se apagaram. Os árbitros, então, paralisaram os relógios. Mas Fischer insistiu em continuar, no escuro, a análise da posição. Os árbitros permitiram. Quando as luzes se acenderam, a partida continuou de uma forma inusitada: o melhor atacante do xadrez mundial se defendendo com unhas e dentes e, atacando, estava o melhor defensor da história do xadrez. Mas o tempo foi fatal para Petrosian: com poucos segundos para terminar, ele erra - e Fischer acaba por ganhar a partida.

Mas, na segunda partida, Petrosian envolve o rei de Fischer numa perseguição que acaba no 32º lance. O score está igualado.

Na terceira, Petrosian outra vez consegue vantagem, mas Fischer escapa da derrota através de um empate por repetição de jogadas.

Na quarta partida, insolitamente, é Fischer quem oferece empate após alguns poucos lances. Seu conhecido espírito de luta parece arrefecido.

Na quinta, depois de recusar o empate proposto por Petrosian, Fischer, logo em seguida, propõe o mesmo, que é aceito. Larry Evans, um dos “segundos” de Fischer, fez, então, um comentário revelador: “Petrosian está fazendo com que Bobby jogue o tipo de xadrez que ele joga”,

Porém, na sexta partida, Petrosian joga mal, erra, e Fischer vence. O cansaço e a progressiva exaustão começam a ser fatores de peso - contra o soviético. Esse era, frisamos, o terceiro match que os jogadores disputavam no espaço de poucos meses (entre maio e setembro de 1971). E Petrosian tinha 14 anos a mais do que Fischer.

A definição viria na partida seguinte – a decisiva do match. Fischer finalmente faz uma partida convincente e derrota Petrosian. Daí por diante, o cansaço e os problemas de saúde do soviético tornaram fácil para Fischer vencer mais duas partidas e fechar o match com 5 vitórias, uma derrota e três empates.

Com isso, só faltava Spassky no caminho de Fischer. Apesar de todos os seus problemas, o campeão não era um jogador fácil de derrotar, mesmo para Fischer.
Carlos Batista Lopes.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).
REFERÊNCIA:
http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias11.htm

ARTIGO 162 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ 10 (ANO I, Nº 168. DE 1 A 7 DE MAIO DE 2010).

Misérias e Glórias do Xadrez - 10
Carlos Batista Lopes

Página inicial


A manobra era totalmente irregular: Fischer não havia participado do Campeonato dos EUA de 1969, que era ao mesmo tempo o torneio zonal que escolhia os participantes americanos no Interzonal de Palma de Mallorca. Portanto, não podia ir ao torneio e não podia estar entre os possíveis candidatos ao título mundial. No campeonato norte-americano, três jogadores haviam se classificado para o Interzonal: Reshevsky, Addison e Benko - naturalizado americano depois que, em 1958, abandonou a equipe da Hungria no Campeonato Mundial Estudantil por Equipes, na Islândia.

Pela desistência da vaga no Interzonal, Benko recebeu a módica quantia de US$ 2.000,00 da Federação de Xadrez dos EUA (USCF). É quase inevitável o pensamento de que os desertores do Leste europeu eram muito baratos...

Benko, a julgar pelo incidente de 1962, no Interzonal de Curaçao, onde esmurrou seu colega de delegação, não era exatamente um amigo de Fischer. (Depois, Benko tentou fazer o papel, e talvez realmente tenha melhorado suas relações com Fischer. Porém, falar a verdade jamais foi um mandamento para ele: Benko demorou cinco anos para desmentir que tivesse recebido dinheiro para desistir do Interzonal, o que fez em julho de 1975 na "Chess Life & Review", onde afirmou que os US$ 2.000 eram referentes a serviços como "segundo" de Reshevsky e Addison. O que não impediu que o presidente da USFC na época do pagamento, Leroy Dubeck, assim como um ex-diretor-executivo da entidade - isto é, o tesoureiro de facto - reafirmassem posteriormente que o dinheiro foi em troca da desistência).

EDMONSON

Ainda não é totalmente claro como foram as articulações para colocar Fischer no Interzonal. O fato é que desde antes do Campeonato dos EUA (novembro de 1969), o manda-chuva da USCF, coronel Ed Edmonson, fazia gestões para ter Fischer como candidato ao título, o que não havia feito no Interzonal de Sousse, nem quando o jogador norte-americano, apesar de estar à frente dos concorrentes, ameaçou abandonar o torneio - e, depois, cumpriu a ameaça.

Porém, dessa vez Edmonson, um "oficial de inteligência" da Força Aérea, tentou convencer Fischer - a correspondência entre os dois é hoje pública – a participar do campeonato americano, onde seria, certamente, classificado para o Interzonal: desde 1957, Fischer somente não havia sido campeão dos EUA nos anos em que não participou do campeonato.

Antes que apareçam acusações de que estamos possuídos por uma "visão conspirativa da história" (como se as conspirações, as verdadeiras, não existissem na luta política, e, portanto, na História), esclarecemos que o coronel Edmonson realmente interessava-se por xadrez. É verdade que a única partida que conhecemos dele é medíocre, mais ainda considerando as condições em que foi jogada: numa simultânea contra Koltanowsky, em que este, "às cegas" (ou seja, sem tabuleiro, apenas com a memória), enfrentou 56 jogadores. Mas, dirigentes de entidades, sejam de xadrez ou de futebol, não necessitam ser bons jogadores - senão, o Duailibe e o Eurico Miranda não poderiam chegar a presidentes do Corinthians e do Vasco.

No entanto, parece que havia alguma razão além das enxadrísticas para que um "oficial de inteligência", um coronel aposentado da Força Aérea, tenha se tornado presidente da USCF, e, depois de encerrado o seu mandato, tenha assumido um cargo criado especialmente para ele – o de "diretor-executivo" - com poderes reais acima da autoridade formal do presidente.

Não se trata de uma especulação, ou de mera opinião. Vejamos o que diz um dos sucessores de Edmonson na "diretoria-executiva" da USCF, Al Lawrence, em artigo publicado na edição de setembro último da revista da entidade, "Chess Life Magazine".

Lawrence lembra que, pelas regras, era "irremediável" (sic) que Fischer não podia participar do Interzonal de Palma de Mallorca. E, continua: "O mais importante é que não havia dispositivo algum do estatuto da USFC que permitisse substituir por Fischer um dos legitimamente classificados. Dubeck e Edmonson tiveram que engendrar a criação de uma regra que permitisse isso. Eles, então, pagaram US$ 2.000 ao GM Pal Benko para sair fora. Além disso, tiveram que fazer uma artimanha política na FIDE para ganhar o controle da diretoria (....). Dubeck é rápido em dar todo o crédito às bem sucedidas estratégias fora do tabuleiro de Edmonson, um coronel aposentado da Força Aérea" (cf., Al Lawrence, "Fischer: fame to fallout", Chess Life Magazine, setembro/2007 - grifos nossos).

A "artimanha" para controlar a diretoria da FIDE foi um encontro clandestino de Edmonson e Dubeck com um delegado soviético. Segundo o depoimento de Dubeck a Lawrence, esse delegado queria "fazer um acordo com Edmonson". Por quê com Edmonson e não com Dubeck, que era o presidente da USFC?

Não era apenas porque todos sabiam que quem mandava na USFC era Edmonson. A questão é que este era quem tinha as ligações subterrâneas, ou seja, com os órgãos de espionagem norte-americanos. Caso contrário, não poderia saber - como Dubeck, até então, não sabia - que havia um delegado soviético querendo "fazer um acordo".

É o que explica que Dubeck acrescente que o obstáculo para realizar o acordo era a KGB. Segundo ele, o intérprete do delegado soviético era um agente da KGB (no original, "um reputado assassino da KGB" - para certos norte-americanos, isso é a mesma coisa que "um agente da KGB"; que diabo estaria fazendo nessa história um "assassino"? Que utilidade teria? Essa questão não parece ter ocorrido a Dubeck; mas Edmonson sabia, como veremos, que esse "assassino" servia apenas para contemplar a fantasia e os escrúpulos de Dubeck - cobrindo um ato de corrupção com uma capa de ato heróico).

"Edmondson treinou Dubeck sobre o que fazer". Quando se encontraram com o delegado soviético e seu intérprete, no ponto marcado pelo primeiro, "Dubeck subitamente puxou o perplexo agente para dentro de uma loja de roupas, insistindo em obter o conselho do russo sobre uma compra. Não se preocupe, Edmonson havia dito a Dubeck, é improvável que ele se arrisque a matar o presidente da USCF. ‘E funcionou’, disse Dubeck a Lawrence, "eu tirei o agente da KGB do caminho e Ed fez o acordo. Ele foi eleito para a diretoria da FIDE, e, desde que devia sua posição a nós, seu voto estaria à disposição mais tarde’". (Al Lawrence, art. cit.).

O que há de verdade nessa história, não sabemos. O ilustrativo nesse relato é o papel de Edmonson. Qualquer semelhança com um agente da CIA, NSA ou agências semelhantes não parece ser mera coincidência.

Dubeck não parece um mentiroso. Pelo contrário, o que conta é muito comprometedor, inclusive para ele, e sempre relata os acontecimentos da maneira que se esperaria, isto é, naquele estilo algo elíptico que se tornou uma característica do fariseu norte-americano, e que alguns ingênuos, por mimese, também acabaram por adotar. Por exemplo, sobre os telegramas que enviou a Max Euwe (o ex-campeão substituíra Rogard como presidente da FIDE) a respeito da participação de Fischer: "Alguns deles não eram, devemos dizer, completamente honestos".

Não há como saber, com os dados disponíveis, se era realmente o suposto soviético "da KGB" que Edmonson queria afastar, para que pudesse fazer o acordo com o outro. Pois, se há algo estranho no relato de Dubeck é um soviético que - em linguagem sem rebuços - queria trair, comparecer a um encontro clandestino com dois americanos, levando, ou sendo acompanhado ostensivamente, por um agente da KGB. Quase tão estranho é os dois americanos comparecerem a esse encontro. Será que o suposto "agente da KGB" era mesmo quem Edmonson queria afastar do encontro com o delegado soviético? Ou era Dubeck quem ele queria que não tomasse conhecimento do acordo? Pois o presidente da USCF somente soube do acordo através de Edmonson. Não estava presente quando foi fechado, pois estava ocupado em impedir que o suposto "assassino", que mais parecia um dos Três Patetas do que um agente da KGB, continuasse grudado no delegado soviético... Mas, com esse ato indômito, para o qual tinha sido "treinado" por Edmonson, também Dubeck ficou fora do encontro.

Nos parece difícil que um delegado soviético na FIDE votasse contra a posição da Federação de Xadrez da URSS, assim como qualquer delegado em relação à posição de sua federação nacional. Mas talvez não fosse necessário: a postura dos soviéticos já era demasiado conciliadora. Dubeck está se referindo, nesse caso, a impedir que alguma atitude inusitada de Fischer provocasse sua desclassificação pela FIDE. Assim, o suborno de um delegado soviético seria uma tentativa de conseguir uma garantia a mais de que o plano para derrotar a URSS não viesse por água abaixo devido a alguma atitude antiesportiva do seu próprio jogador. Além do que, é bom lembrar, os membros da diretoria da FIDE não teriam tempo de consultar sua federação a respeito de quaisquer questiúnculas levantadas por Fischer. Sobretudo numa época em que as comunicações de longa distância eram feitas pelo antigo telefone e pelo telégrafo, eles teriam alguma autonomia para decidir as várias - e foram inúmeras - questões levantadas.

Sobre isso, é interessante uma observação de Dubeck, em seu depoimento para Al Lawrence, sobre a atitude do presidente da FIDE: "Ele devia ter desclassificado Fischer, mas não o fez".

ENTRESSAFRA

Em resumo, o xadrez não parece ter sido, desde cedo, uma área negligenciada pelo establishment dos EUA no confronto com a URSS.

O que não se sabe - ou, melhor, nós não sabemos - é até que ponto a ação de Edmonson, no início, estava articulada com escalões mais altos do governo e dos órgãos de "inteligência" americanos. É possível que tenha sido ele o primeiro a perceber que os norte-americanos, diante da entressafra que acometia o xadrez soviético, tinham, afinal, uma chance de golpear o prestígio da URSS numa área onde ele jamais havia sido abalado, apesar de todas as renitentes tentativas anteriores.

Mas também é possível que essa situação tenha sido avaliada primeiramente em nível mais alto. Afinal, entre os 200 mil funcionários que, segundo o Congresso dos EUA, havia na CIA e órgãos congêneres nessa época, devia haver algum, ou alguns, que estavam dedicados a analisar a situação no xadrez soviético e podiam perceber o que estava acontecendo: Botvinnik já havia se retirado das competições; Keres, Petrosian, Smyslov e Geller não tinham, até pela idade, condições de se opor a Fischer; Tahl apresentava uma saúde demasiado frágil; e Korchnoi, cada vez mais histérico, não era um competidor sério.

Porém, havia à disposição dos norte-americanos algo ainda mais concreto do que essa avaliação geral.
O campeonato soviético de 1969 ocorreu em Moscou, entre 6 de setembro e 12 de outubro daquele ano. Já o campeonato dos EUA aconteceu em Nova Iorque, de 30 de novembro a 17 de dezembro. Ambos valiam como torneios zonais, ou seja, classificavam jogadores do país para o Interzonal de Palma de Mallorca que, por sua vez, decidiria seis dos candidatos a desafiante de Spassky, além de Petrosian e de Korchnoi, que já estavam classificados, o último por ter sido finalista nos matches entre candidatos do campeonato anterior).

Portanto, quando o coronel Edmonson deu a partida para o campeonato norte-americano, já sabia quem eram os jogadores soviéticos que haviam sido qualificados para o Interzonal: Smyslov, Polugayevsky, Taimanov e Geller.

O primeiro, pela idade e pelo retrospecto desfavorável (5 derrotas, 5 empates e apenas uma vitória contra Fischer), não era páreo, sobretudo num match longo, quanto mais em três matches longos - pois esta era a forma de decidir, após a abolição do Torneio de Candidatos, quem seria o desafiante do campeão mundial; o segundo, jamais havia enfrentado Fischer (no Interzonal de Palma de Mallorca, eles empataram) e, apesar de excelente jogador, dificilmente alguém pensaria em colocá-lo no mesmo nível do norte-americano; o terceiro, já era considerado um veterano no final da década de 50 - pelo menos assim o chamou, naquela época, Vasily Panov, em seu famoso livro sobre as aberturas do xadrez; restava Geller, um dos três jogadores soviéticos com retrospecto favorável diante de Fischer (ou outros eram Tahl e o próprio campeão, Boris Spassky). Mas Geller já estava a caminho dos 50 anos, enquanto Fischer nem havia completado 30. Num match longo, para não falar em três, essa é uma diferença fatal.

Além dessa avaliação sobre os que concorriam com Fischer, dificilmente os problemas específicos de Spassky deixaram de merecer atenção nos EUA. Era público o desconforto de Spassky com a política soviética, sobretudo após os acontecimentos na Tcheco-eslováquia em 1968, e, desgraçadamente, não porque fosse partidário de outro caminho para o socialismo. Como outros, apenas esmagava-se diante da campanha que pintava a URSS como uma tirania e os EUA como uma democracia, assim como a área de influência do último - aquela coleção de ditaduras que tão bem conhecemos - como "mundo livre".

Em suma, no momento em que, para enfrentar Fischer, era necessário acreditar que valia a pena defender a URSS, pois a luta enxadrística havia se transformado numa guerra política, o melhor jogador soviético, para usar uma expressão moderada, não tinha certeza sobre isso.

BOBBY

No entanto, o problema de Edmonson e do establishment norte-americano era Fischer. Apesar da FIDE, depois de suas acusações aos soviéticos em 1962, haver mudado a forma de disputa do título - e exatamente no sentido que ele havia proposto – Fischer não disputara mais o campeonato mundial. Não comparecera ao Interzonal de Amsterdã, em 1964, apesar de estar classificado (foi campeão dos EUA no ano anterior) e abandonara o Interzonal de Sousse, em 1967 - um escândalo que rendeu não poucas páginas às revistas de xadrez, causado pela perplexidade: Fischer estava em primeiro lugar, com um resultado impressionante (em 10 partidas havia ganho sete e empatado três), quando se retirara, mesmo com a FIDE cedendo às exigências de que sua agenda de jogos – e, portanto, também a de seus oponentes - estivesse submetida aos dogmas da Igreja Mundial de Deus.

Edmonson não conseguira que Fischer disputasse o Campeonato dos EUA de 1969. Mas, então, providenciou a esquisita interpretação para inclui-lo no Interzonal de Palma de Mallorca: se um dos três americanos classificados para o Interzonal desistisse e os outros jogadores que participaram da final do Campeonato dos EUA - portanto, suplentes dos classificados - concordassem, isto é, também desistissem de substituir o desistente, Fischer poderia jogar em Palma de Mallorca.

Restava apenas convencer Fischer. É nesse momento que a Casa Branca, isto é, Nixon e, sobretudo, Kissinger, na época Conselheiro de Segurança Nacional, parecem ter saído dos bastidores e entrado em cena.
Carlos Batista Lopes.
PESQUISADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).
REFERÊNCIA:
http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias10.htm

ARTIGO 161 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ 9 (ANO I, Nº 17. DE 1 A 7 DE MAIO DE 2010).

Misérias e Glórias do Xadrez - 9
Carlos Batista Lopes

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Tigran Petrosian foi, ao mesmo tempo, um dos jogadores de xadrez mais originais da história e um dos mais subestimados – sobretudo, na época, pela imprensa soviética. Por isso, vale a pena reproduzir o juízo do campeão que ele derrotou em 1963:

“Petrosian possui um talento único em xadrez. Como Tahl, ele não esforça-se para jogar ‘de acordo com a posição’, no sentido em que antes isso era entendido. Mas enquanto Tahl tentava alcançar posições dinâmicas, Petrosian criava posições nas quais os eventos se desenvolviam como num filme em câmara lenta. É difícil atacar suas peças: as peças atacantes só avançam lentamente, atoladas no pântano que cerca o campo das peças de Petrosian. Se, finalmente, você arma um ataque, então resta pouco tempo, ou a fadiga entra em jogo. Para entender a força do novo campeão, é necessário também notar a excelente técnica de Petrosian na realização da vantagem posicional” (Botvinnik, “Achieving the Aim”, ed. cit., pág. 172 – o grifo é nosso).

Avaliação essa que tem algum parentesco com o comentário de Fischer, na análise de sua partida com Petrosian, no Torneio Interzonal de Portoroz: “Eu estava pasmado no transcorrer do jogo. Cada vez que Petrosian conseguia uma boa posição, ele manobrava para obter uma melhor” (Fischer, “My 60 Memorable Games”, ed. cit., pág. 27).

Botvinnik lembra, também, que, apesar de não haver “jogado muito bem” durante o match, “minha forma não era de todo má: três meses depois, na Spartakíada dos Povos da URSS, fiz 8 pontos em 9 possíveis!”.

Porém, a consideração de que Petrosian “não esforça-se para jogar de acordo com a posição” pode levar a uma idéia errônea do seu estilo. Ao contrário de Tahl, com quem Botvinnik o compara, Petrosian foi um jogador com um sentido de posição (ou seja, senso estratégico) além das concepções anteriores, daí a observação de que ele não jogava “de acordo com a posição no sentido em que antes isso era entendido”. Realmente, Petrosian extraiu, pode-se dizer, as últimas conseqüências do conceito de posição, formulado por Steinitz (v. parte 1 desta série) na segunda metade do século XIX. Ou seja, Petrosian subiu um novo degrau na estratégia em xadrez.

Para não dificultar a compreensão dos leitores que não são enxadristas, ficaremos por aqui a respeito dessa questão, acrescentando apenas a síntese de Petrosian: “Estou absolutamente convicto de que no xadrez – apesar dele continuar sendo um jogo – nada é acidental. Este é o meu credo”. Observemos que tal formulação vai além, por exemplo, da declaração de Capablanca: “não acredito em combinações que não sejam rigorosamente calculadas”, na qual o leitor poderá, sem prejuízo do conteúdo, substituir “combinações” por “seqüências de jogadas”.

DEFESA

Petrosian foi, provavelmente, o único gênio defensivo do xadrez, e a maior demonstração desse talento é que conquistou duas vezes o título mundial – contra Botvinnik e, depois, contra Spassky, então em pleno auge. Como ele mesmo advertiu, “eu sou um sujeito cauteloso. Em meu estilo, como num espelho, está refletido o meu caráter. Entretanto, eu estou certo de que é impossível vencer dois campeões mundiais sendo apenas ‘cauteloso’” (Esta citação de Petrosian, como as posteriores, são do livro de G. Hakobyan, “Tigran Petrosian” - este livro só existe, atualmente, em armênio, mas alguns pequenos trechos foram traduzidos para o inglês no site “Chessgames”).

Em suma, ele não via a defesa como algo passivo. São notáveis as suas partidas onde envolve progressivamente o oponente, deixando-o sem espaço e, cada vez mais, sem opções de jogadas (“pode ser que eu goste de defender mais do que de atacar. Mas quem provou que defender é menos perigoso do que atacar?”).

Sintomaticamente, Kasparov, que adotou e tentou rebatizar algumas das inovações de Petrosian (por exemplo, a chamada Variante Petrosian da Defesa Índia da Dama, que quase se tornou a “variante Kasparov”), diz, em “Meus Grandes Predecessores”, que o armênio era “o filho ideal de sua época. (....) [uma época] de completo sufocamento da liberdade de expressão, de diminuição na crença nos ideais comunistas, substituídos pelo conformismo, reticência, cautela e discrição. Em Petrosian, com sua infância difícil, quieta prudência e enorme talento natural, essas qualidades estavam presentes em plena medida” (grifos nossos).

Kasparov nem mesmo consegue perceber a contradição evidente entre “enorme talento” e as “qualidades” (?) de um burocrata cinzento, que atribui a Petrosian. Mas, por que ele acha que o talento de Petrosian era “natural”? Simplesmente porque é preciso que nenhuma característica positiva tenha a ver com a sociedade em que Petrosian nasceu e viveu. Por conseqüência, seu talento só pode ser um dom da natureza, um dom que, como raio em céu azul, a natureza pode conceder até a um “conformista”, ou seja, a uma mediocridade. Para completar esse mero mecanismo da propaganda reacionária, essa forjada mediocridade - e só ela - é que tem a ver com a sociedade em que Petrosian nasceu e viveu. Já o talento...

Mas isso é apenas mais um exemplo do vácuo moral de Kasparov, onde, há muito, a coerência e a integridade foram extirpadas pelo oportunismo sem escrúpulos. Para quem declarou, numa de suas viagens ao Brasil, que foi perseguido pelos comunistas porque era filho de um judeu e de uma armênia, tudo é possível. Já abordamos a suposta perseguição aos judeus e a consideração que Kasparov mostrou pelo pai. Resta agora apontar que, no livro que citamos, ele considera que a expressão maior no xadrez do regime que o teria perseguido por ser filho de uma armênia, era um armênio... Será que os comunistas só perseguiam os filhos de armênias, mas não os armênios?

Quanto à menção à “infância difícil” de Petrosian como origem de seu suposto “conformismo”, aqui entramos no terreno da infinita canalhice. Que, como quase sempre, é apenas uma projeção: Kasparov projeta, sobre um homem de caráter incomensuravelmente superior, os seus próprios problemas. Mas não é surpreendente que, por essa diferença de estatura, ele não consiga entender que as dificuldades nem sempre esmagam as pessoas, e que, ao contrário, muitos cresçam, e não pouco, ao enfrentar os desafios da vida.

TRAJETÓRIA

Realmente, o hoje famoso estilo defensivo de Petrosian parece ter profundas raízes psicológicas. Armênio, ele nasceu na Geórgia. Perdeu seus pais durante a II Guerra Mundial. Aos 15 anos, sem pai e sem mãe, assumiu a criação de seus irmãos. Sua única distração, durante essa época, parece ter sido o xadrez, descobrindo duas influências que o moldaram originalmente como jogador: as obras de Nimzowitsch, o teórico da escola “hipermoderna”, e as partidas de Capablanca. Sua primeira formação enxadrística, como a de Tahl, foi feita entre os Pioneiros Soviéticos – a instituição para-partidária que na URSS era dedicada às crianças.

Sua trajetória nunca foi fácil. Mas conseguiu sempre superar, com uma tenacidade impressionante, as dificuldades. Esteve 10 vezes entre os candidatos a desafiantes do campeão mundial - e venceu 4 vezes o Campeonato da URSS, não perdendo uma só partida em seis deles (nas Olimpíadas, de 129 partidas que jogou, perdeu uma). Era, além de tudo, um excelente caráter, a quem feria a incompreensão que seu estilo encontrou na época - como registrou o ex-campeão norte-americano Arthur Bisguier, um dos primeiros, após a morte de Petrosian, em 1984, a celebrá-lo.

Apesar de todas as dificuldades, Petrosian foi um homem feliz. Em sua entrevista de 2003, a primeira mulher de Tahl, Sally Landau, lembra com admiração – e alguma inveja - o amor do casal Petrosian, Tigran e Rona Petrosian. Talvez o seu legado seja bem expresso por uma de suas observações: “Todo jogador de xadrez, quando enfrenta seu oponente, também enfrenta a si mesmo. Cada batalha é uma luta interior”.

SPASSKY

É possível que somente muito tarde os responsáveis pelo xadrez soviético tenham advertido sobre a origem de certas debilidades de Boris Spassky. Se é que chegaram a alguma conclusão sobre isso. No entanto, essas debilidades eram sensíveis desde a primeira fase de sua trajetória – a fase que, depois, iria provocar a admiração de Fischer. Nessa época ele parecia sempre trair-se pelos nervos nos momentos decisivos. Sua derrota para Tahl na última rodada do Campeonato Soviético de 1958 ficou famosa: naquele ano a FIDE havia reduzido para quatro o número máximo de vagas para cada país no Interzonal de Portoroz, de onde sairiam os candidatos a desafiante do campeão mundial – uma decisão, por sinal, que afetava um só país: a URSS.

Spassky necessitava pelo menos empatar para disputar a quarta vaga soviética. Ou seja, não podia perder, mas não precisava, necessariamente, ganhar. Uma situação relativamente confortável, pois Tahl já estava classificado para o Interzonal – mesmo se perdesse a partida, iria a Portoroz. No entanto, é verdade, se Tahl quisesse garantir o bicampeonato soviético sem depender do resultado de outros jogadores, precisava ganhar. Para isso, o empate não lhe servia.

Spassky esteve em vantagem durante quase toda a partida – uma longa batalha que durou 73 movimentos, ou seja, 146 jogadas. Após o adiamento, Spassky conseguiu uma posição francamente ganhadora – e jogou a vitória pela janela na 62ª jogada. Tahl igualou o jogo e propôs o empate. Spassky recusou – e perdeu, depois de uma trinca de erros. Mais importante do que a derrota, para entendermos Spassky, foi sua reação, depois contada por ele mesmo: levantou-se da mesa chorando e assim percorreu, por horas e sem destino, as ruas de Riga, onde se realizou o Campeonato da URSS de 1958.

No entanto, poucos jogadores foram tão insistentemente promovidos no meio enxadrístico – ainda não era a época em que jogadores de xadrez se tornaram assuntos da mídia em geral – quanto Spassky. No início da década de 60, houve até quem propusesse um novo conceito: o “jogador universal”, isto é, aquele que é capaz de dominar igualmente a estratégia e a tática – e adaptar plasticamente o seu estilo ao do oponente. A base do suposto novo conceito eram as vitórias de Spassky.

Em nossa opinião – que, sem dúvida, é discutível – tomava-se por qualidade o que era um subproduto dos problemas não-resolvidos de Spassky, problemas que lhe conferiam uma certa indefinição de personalidade, que seria fatal em 1972, no match com Fischer. Em suma, Spassky não era – e não é – um canalha, mas era – e é - um homem muito dividido. Não por acaso, apesar de seus pontos de vista políticos e os de Korchnoi serem aparentados, Spassky (aliás, como Petrosian, Karpov, Botvinnik, e até Judite Polgar), jamais o suportou. Ao contrário de Korchnoi, jamais traiu o seu país, mesmo quando, depois de casar-se com uma francesa, resolveu sair dele e naturalizar-se francês, em 1978. O que não quer dizer que não tenha – e hoje mais do que antes – dito algumas coisas que, simplesmente, não são verdade. No entanto, não parece que ele o faça por malignidade, mas por fraqueza e esmagamento.

Spassky aprendeu xadrez aos cinco anos, no trem em que viajava, quando Stalin decidiu que as crianças de Leningrado fossem retiradas da cidade, pouco antes que os nazistas fechassem o cerco que matou um milhão de seus habitantes. Seus primeiros triunfos causaram sensação. E, depois da primeira fase que mencionamos, ele pareceu se retemperar. No entanto, olhando para sua trajetória enxadrística do começo ao fim, alguém já disse que Spassky é o único jogador que chegou a campeão mundial e, apesar disso, sua história sempre causa a impressão de que não realizou todo o seu potencial – e por preguiça.

Este era, precisamente, um problema que Petrosian não tinha. Não é certeza que, em meio à promoção de Spassky na URSS, ele tenha pensado em não disputar o match de 1966 pelo título mundial. Segundo algumas versões, sua esposa, Rona Petrosian, é que o teria estimulado a enfrentar o desafiante. Sem dúvida, Rona deve tê-lo estimulado, como sempre fez. Porém, não nos parece típico de Petrosian abandonar o título sem luta.

Mas, em março de 1966, quando os dois jogadores começaram o match, Spassky era o franco favorito. Surpreendentemente, em meio a uma série de empates (17 ao todo), Petrosian foi o primeiro a vencer, na sétima partida e, depois, na décima. Spassky igualou a contagem, ao vencer a 13ª e a 19ª partidas.

Mas a tenacidade e a força de vontade eram o campo de Petrosian, não de Spassky. Assim, logo na partida seguinte a que Spassky igualou, Petrosian venceu e ficou um ponto à frente. Em seguida, ganhou também a 22ª partida. Spassky conseguiu triunfar na 23ª e penúltima partida, mas não conseguiu vencer Petrosian na última. Assim, o campeão conservou seu título, vencendo por um ponto o desafiante – uma tarefa que nem Botvinnik havia conseguido cumprir em seus primeiros matches.

Do ponto de vista da teoria do xadrez, havia sido um massacre – o placar, por várias razões, inclusive o cansaço, nem de longe refletiu esse fato.

Pelo que ele mesmo conta, Spassky resolveu levar a sério a preparação teórica nos três anos seguintes. Nas suas palavras, “tornei-me um especialista no estilo de Petrosian”. Porém, para enfrentar Petrosian novamente, ele teria que passar pelos matches entre os candidatos. E, com efeito, derrotou Geller, Larsen e Korchnoi por contagens mais do que convincentes.

Em março de 1969, quando começou o novo match entre Spassky e Petrosian, o primeiro estava realmente bem preparado, ainda que também o campeão. Porém, Petrosian já estava com 40 anos e Spassky apenas com 32. Não é uma diferença pequena em um match de 24 partidas. E, como observou Botvinnik, que, nesse particular, sabia, mais do que do que qualquer outro, do estava falando, “infelizmente [Petrosian] nunca foi um pesquisador. Para tais jogadores, 40 anos é uma idade perigosa. Com o inevitável declínio da capacidade para o cálculo, seu talento desbota muito – se não é polido novamente!” (“Achieving the Aim”, pág. 173).

Mesmo assim, não foi um passeio: Petrosian ganhou a primeira partida e Spassky somente igualou na quarta. Depois disso, venceu também a quinta e a oitava, mas Petrosian não era um cachorro morto: venceu a 10ª e a 11ª. Spassky voltou a ganhar na 17ª e na 19ª, e Petrosian descontou na 20ª. Mas era tarde. Spassky ganhou a partida seguinte - e os empates na 22ª e 23ª selaram o resultado.

Todas as previsões eram de um longo reinado para Spassky. Simplesmente porque não havia nenhum jogador soviético no auge. Todos os outros grandes jogadores já tinham passado do apogeu, e não havia ainda, na geração seguinte à de Spassky, quem os substituísse à altura. Pela primeira vez desde o fim da II Guerra, o xadrez soviético passava por uma entressafra.

Entretanto, com o afastamento de Fischer, então dedicado a suas atividades religiosas, também não havia, entre os possíveis desafiantes estrangeiros, algum que fosse capaz de derrotar Spassky. Portanto, os soviéticos teriam algum tempo – pelo menos até 1975, com a conservação do título por Spassky em 1972 – para preparar a nova geração.

A realidade, porém, não caminha de acordo com as ilusões. Alguém nos EUA percebera a entressafra soviética e os problemas de Spassky, e não deixaria passar a oportunidade – ainda que fosse preciso passar por cima de estatutos, regulamentos, regras, e até de leis.

Foi então que, pouco antes de começar o Interzonal de Palma de Mallorca, em novembro de 1970, um dos participantes dos EUA, o ex-húngaro Pal Benko, desistiu do torneio para dar o seu lugar, precisamente, a Fischer, que nem mesmo disputara uma vaga para ir ao Interzonal. Mas esse é o assunto da próxima parte deste artigo.
Carlos Batista Lopes.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).
REFERÊNCIA:
http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias09.htm

ARTIGO 160 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ 8 (ANO I, Nº 016. DE 21 A 30 DE ABRIL DE 2010).

Há um aspecto da personalidade e da vida de Fischer que foi muito pouco abordado no que se escreveu sobre ele: sua primeira tendência não foi a de antagonizar os jogadores soviéticos, mas a de tentar ser aceito por eles. O que é, aliás, coerente com seu estilo de jogo, desenvolvido a partir das pesquisas enxadrísticas soviéticas das décadas de 30, 40 e 50. No entanto, essas tentativas de aproximação não obtiveram sucesso – ou, para ser exato, compreensão. Mas que ele, ao seu jeito, tentou, não nos parece haver dúvida.

No principal livro de Fischer, uma coleção de análises das suas partidas “memoráveis” até o fim da década de 60, há uma breve menção a um episódio significativo: comentando seu jogo com Arthur Bisguier no campeonato americano de 1963, ele conta que havia conversado anteriormente com David Bronstein (logo quem!) sobre a 17ª jogada, uma novidade em relação ao que o seu interlocutor havia jogado em 1953 contra Samuel Reshevsky, no Torneio de Candidatos, em Zurique: “Quando eu disse a Bronstein (em Mar del Plata, 1960) que a jogada era um tremendo [tremendous] melhoramento em relação à sua partida com Reshevsky, ele respondeu: 'Claro. Depois de sete anos alguém iria achar um melhoramento'” (Fischer, “My 60 Memorable Games”, Simon and Schuster, NY, 1969, pág. 293).

Parece razoável a resposta, diante da atrevida palavra “tremendo”, usada por Fischer. No entanto, em 1960, Fischer era um desajeitado (e haja desajeitado nisso) jovem de 17 anos e Bronstein, com 36, era, desde 1950, um dos maiores jogadores do mundo. Nos parece evidente que Fischer queria a aprovação de Bronstein - e recebeu um corte brusco. O fato de que em 1969, quando publicou seu livro, tenha sentido necessidade de reproduzir, ou não tenha conseguido omitir, uma réplica de nove anos antes que o reduzia a “alguém”, ou seja, um qualquer, somente nos parece enfatizar o que acabamos de dizer – e o ressentimento que acumulou com a rejeição dos soviéticos.

Infelizmente, não foi apenas Bronstein que tratou mal as tentativas de aproximação do jovem Fischer. O próprio Botvinnik repete tanto a palavra “arrogante” sempre que se refere a Fischer, que torna-se nítido que jamais se deteve a pensar no que essa arrogância significava em termos de insegurança, necessidade de aceitação - e medo à rejeição. Quanto a Tahl, um dos poucos soviéticos que não parece irritado com Fischer, a princípio se divertiu bastante com o ridículo do colega, o único mais jovem que ele entre os Grandes Mestres da época... Mas isso também não ajudou muito.

MEMORIAL

Devido às implicações políticas do match Fischer-Spassky, em 1972, da interferência de Kissinger, e da quase incrível defensiva dos soviéticos, tem-se a tendência a ver o Fischer das décadas de 60 e 70 apenas como um direitista maluco, instrumento inconsciente do establishment norte-americano na “guerra fria” - para o que contribuiu, não pouco, o seu artigo de 1962 na “Sports Illustrated”.

No entanto, a realidade é (ou foi) mais complexa. Basta ver a sua atitude em relação a Cuba, precisamente o único país que, no início da década de 60, irritava mais a casta dominante nos EUA do que a URSS.

Em 1965, Fischer estava inscrito no Torneio Memorial Capablanca, em Havana. Como aconteceria 27 anos depois em relação à Iugoslávia, o governo norte-americano proibiu que fosse a Cuba. Para o establishment, a participação do maior jogador dos EUA num evento em Havana estava longe de ser um acontecimento alvissareiro. Por outro lado, considerando o seu temperamento, proibi-lo de viajar era uma temeridade, até porque as condições políticas para puni-lo não eram as que surgiriam quase trinta anos depois: Johnson não era Bush (pai ou filho); o Partido Democrata na Casa Branca não era – e não é – a mesma coisa que o Partido Republicano na Casa Branca; o movimento pelos direitos civis estava na rua; e já se começava a gestar a rebelião contra a Guerra do Vietnã; em síntese, os EUA saídos do breve governo Kennedy não eram os EUA de 1992, após 11 anos de Reagan/Bush.

Foi nesse momento que entrou em ação o indefectível (nessas horas) “The New York Times”, com uma suposta notícia em que Fidel Castro capitalizava politicamente o Memorial.

A “notícia” era uma fraude, as declarações de Fidel, falsas. Mas Fischer dirigiu ao líder cubano o seguinte telegrama:

“Primeiro-ministro Fidel Castro,

“Oponho-me às suas manifestações, publicadas hoje no 'New York Times', proclamando uma vitória propagandística, e, por este ato, me retiro do Torneio Capablanca. Somente voltarei a entrar no torneio se me enviar um telegrama assegurando-me que você e seu governo não buscam benefícios políticos de minha participação, e que não se produzirão no futuro mais comentários políticos de sua parte a respeito da minha participação. Bobby Fischer".

A resposta de Fidel não se fez esperar:

“Bobby Fischer, New York, USA.

“Acabo de receber seu telegrama. Surpreende-me que você me atribua algum tipo de manifestação referente à sua participação no torneio. A este respeito não disse nem falei uma palavra com ninguém. Só tenho sobre isso notícias que li em despachos de agências norte-americanas. Nosso país não tem necessidade de tão efêmera propaganda. É seu o problema de participar ou não no mencionado torneio. Suas palavras são, portanto, injustas. Se você se assustou e arrependeu-se de sua decisão inicial, seria melhor que imaginasse outro pretexto e tivesse o valor de ser honesto. Dr. Fidel Castro, primeiro-ministro do Governo Revolucionário”.

Surpreendentemente, logo depois de receber a mensagem de Fidel, Fischer confirmou sua participação no Memorial Capablanca e anunciou que, se não podia ir a Havana, jogaria por teletipo, de Nova Iorque. Em suma, reconhecera a razão de Fidel – e percebera, de alguma forma e em algum grau, que esse templo da imprensa americana, o “The New York Times”, tinha algum parentesco com um lupanar.

MARSHALL CLUB

Há um elemento psicológico importante, revelado por Fischer nesse episódio. Ele não conheceu o pai – e não porque este houvesse falecido, mas porque foi afastado dele, e já veremos como e porquê. O pai, falando de forma geral e algo esquemática, para as crianças é o representante do limite entre a fantasia e a realidade. Se a mãe é o objeto das fantasias mais primitivas da criança, o pai é aquele que estabelece o limite dessas fantasias – ou seja, a existência da realidade. Na troca de mensagens entre Fischer e Fidel, é claro quem estabeleceu esse limite – nesse caso, entre a falsidade da mídia imperialista, isto é, a fantasia fabricada por interesses político-ideológicos, e a realidade. O significativo é que Fischer haja reagido tão bem a este limite “paterno”.

Jogando por teletipo, Fischer conquistou o segundo lugar no Memorial Capablanca (15 pontos em 21 possíveis), empatado com o iugoslavo Ivkov e com o soviético Geller, a meio ponto do primeiro colocado, Smyslov. Por teletipo, instalado no Marshall Club, de Nova Iorque, ele havia furado um bloqueio promovido pelo governo dos EUA – e, como se sabe, não seria a última vez.

Porém, houve coisa pior para o establishment: um ano depois, Fischer estaria, em pessoa, na capital cubana - e amistosamente ao lado de Fidel.

Ele havia conhecido Havana aos 13 anos, em 1956, quando fazia parte da equipe do Log Cabin Chess Club, de West Orange, Nova Jersey. Mas, naquela oportunidade, foi acompanhado pela mãe, e Havana era, então, uma cidade diferente: a capital de um país oprimido pela ditadura de Batista, pelas multinacionais e bancos norte-americanos - e pela Máfia.

Já em 1966, com 23 anos, Fischer era o primeiro-tabuleiro da equipe norte-americana na 17ª Olimpíada de Xadrez. No dia da abertura da Olimpíada, 25 de outubro, Fidel entrou na sala de jogos, no hotel Habana Libre. Ele e Fischer apertaram as mãos e, em seguida, o norte-americano fez algumas piadas sobre a troca de mensagens do ano anterior, o que foi correspondido com bom humor pelo líder cubano.

Fischer presenteou Fidel com um de seus livros, devidamente autografado, e, em seguida, disputaram uma partida “em consulta”, ou seja, em dupla. Fidel fez parceria com o campeão mundial Tigran Petrosian contra a dupla formada pelo mestre mexicano Filiberto Terrazas e Fischer. O líder cubano e o campeão mundial venceram a partida.

Note-se que esses acontecimentos se passaram três e quatro anos após a publicação do artigo em que acusava os soviéticos de trapaça (v. Barreras Merino, “Fischer y su vinculación a la Habana”, ext. de “Recorrido del Mundo del Tablero”, em “Ajedrez en Cuba”, vol. II-11, nº21, 06/1998. O autor foi diretor técnico da Olimpíada de Havana).

URSS-EUA

A equipe dos EUA foi a segunda colocada em Havana, graças a Fischer, que venceu 14 partidas, empatou 2 e perdeu apenas uma – para o GM romeno Florin Gheorghiu. Um aproveitamento de 88,2% (15 pontos em 17 possíveis).

A primeira colocada, pela 8ª vez consecutiva, foi a equipe soviética (desde 1952, em 21 Olimpíadas, a URSS venceu 19; somente não venceu em 1976, quando não foi a Israel, e em 1978, quando não enviou a melhor equipe a Buenos Aires - e perdeu da Hungria).

Em Havana, o primeiro-tabuleiro soviético, Tigran Petrosian, foi o único com resultado relativo melhor que Fischer: fez 11,5 pontos em 13 partidas - 10 vitórias, 3 empates e nenhuma derrota (aproveitamento de 88,5%). Fischer fez 15 pontos, mas em 17 partidas. A diferença no número de partidas é devida a que, nas olimpíadas de xadrez, há tabuleiros-reserva, ou seja, jogadores no banco, que podem jogar em determinados matches no lugar dos titulares.

Porém, apesar das relações amistosas entre Fidel e Fischer, a luta política não amainou.

Os EUA, ao invés de boicotarem a Olimpíada de Havana – como fez, por exemplo, a Alemanha Ocidental – resolveram enviar seus melhores jogadores. Mas Fischer havia se convertido a uma seita evangélica que tinha entre seus dogmas um retiro espiritual que começava às 18 h de sexta-feira e ia até as 18 h de sábado. No match com a Dinamarca, os norte-americanos reivindicaram que as partidas começassem às 12 h, ao invés das 16 h, para que Fischer participasse. Os dinamarqueses recusaram – e também o árbitro-chefe da Olimpíada, Jaroslav Sajtar. Os norte-americanos tiveram que substituir Fischer pelo segundo-tabuleiro, Robert Byrne, na partida contra o primeiro-tabuleiro dinamarquês, Bent Larsen.

Porém, contra a URSS os norte-americanos não se comportaram com o mesmo respeito às regras. Repetia-se agora a comédia da Olimpiada de Munique, com uma diferença: Botvinnik não era mais o primeiro-tabuleiro soviético.

Em suma, os EUA ameaçaram retirar-se da Olimpíada se o match com a URSS não fosse reagendado. A resposta do árbitro foi: “de forma alguma”. A equipe dos EUA não apareceu na hora do match com a URSS, mas não foi embora. O presidente da FIDE, o Folke Rogard que já vimos em ação na parte 6 deste artigo, propôs que o match que os EUA haviam perdido por W.O. fosse considerado empatado em 2 a 2. Rogard já passara à fase do vale-tudo contra os soviéticos - seria o desbravador de uma trilha que levaria ao esfacelamento do xadrez mundial.

O leitor que vem acompanhando esta série não terá muita dificuldade em adivinhar o que houve em seguida: os soviéticos concordaram em disputar outra vez o match. No xadrez, não havia mais obstáculo – Botvinnik já não estava lá - à política de apaziguamento, que, no final, conduziria à rendição.

A MÃE

Fischer tinha motivos, não somente enxadrísticos, mas inclusive familiares, para suas tentativas iniciais de aproximação com os soviéticos. Teremos de expô-los brevemente, pois Fischer, de todos os grandes jogadores, é o único que não pode ser descrito sem esse pano de fundo familiar.

Sua mãe, Regina, esteve entre aqueles norte-americanos que mudaram-se para a URSS na década de 30 – a maioria, buscando trabalho e oportunidade de estudar. Foi na URSS que Regina, depois de entrar para a Faculdade de Medicina, casou-se com Hans Gehardt Fischer, um biofísico alemão. Em Moscou, nasceu a primeira filha do casal, Joan, a irmã que depois ensinaria a Bobby o movimento das peças de xadrez.

Sobre algumas polêmicas a respeito da paternidade de Fischer, entraremos apenas em uma questão, porque ela extrapola o plano meramente pessoal. Mas, antes, reproduziremos a única declaração sobre seu pai que conhecemos de Fischer: “Meu pai deixou minha mãe quando eu tinha dois anos de idade. Eu nunca o vi. Minha mãe somente me disse que seu nome era Gerhardt e que ele era de origem alemã” (cf., Frank Brady, “In Defense of Bobby Fischer's Family: House of Cards in the World of Chess”, ChessCafe, 04/06/2002 – este artigo, do primeiro biógrafo de Fischer, é resposta a um tardio e debilóide panfleto macartista, “A mãe de Fischer era uma espiã comunista?”, de um certo Frank Dudley Berry, Jr).

Mas, nos relatórios do FBI, surgiu o nome de Paul Felix Nemenyi, um físico de origem iugoslava falecido em 1952, como provável pai de Fischer. Sobre isso, nos parece que o FBI tinha demasiado interesse em que Nemenyi fosse o pai do filho caçula de Regina. Nessa época, J. Edgard Hoover (algumas das ordens para vigiar os Fischer vieram diretamente de seu gabinete) tentava provar que Regina era uma espiã soviética, apesar da mãe de Fischer trabalhar, modestamente, como enfermeira. No entanto, Nemenyi, com quem teria se relacionado, fez parte do Projeto Manhattan, que construiu a primeira bomba atômica. Para o FBI, não seria uma montagem muito diferente da que fez com o casal Rosenberg – por sinal, como Regina, de origem judaica e politicamente à esquerda.

Ao que parece, o biofísico Hans Gehardt Fischer foi impedido, por razões políticas, de viver com a mulher nos EUA. Ele jamais conseguiu entrar no país, segundo um relatório do FBI (Peter Nicholas e Clea Benson, “Files reveal how FBI hounded chess king”, Philadelphia Inquirer, 17/11/2002).

Radicado no Chile, Hans Gehardt foi visitado pelo filho (então com 16 anos) em 1959, de acordo com testemunho do mestre chileno Eugenio Larrain, que foi seu cicerone nesta visita (v. Hélder Câmara, “Bobby 'Ahasverus' Fischer” - em comunicação pessoal, o autor relatou-nos que a visita de Fischer ao pai foi-lhe confirmada por outro mestre chileno, Pedro Donoso, homem de integridade indiscutível). Evidentemente, esse relato é discrepante com a declaração de Fischer transcrita acima. Mas isso não seria surpresa em quem sempre defendeu tenazmente a sua vida pessoal da espionagem midiática.

Rapidamente, para que não tenhamos que voltar aos aspectos familiares de Fischer: sua mãe interrompeu seus estudos de medicina em 1938; ao voltar para os EUA, sem o marido, aceitou vários empregos e, por fim, tornou-se enfermeira, sustentando a família dessa forma. Não há indício de que tenha sido uma mãe relapsa. Pelo contrário: não apenas sempre foi uma incentivadora de Bobby, como, em 1973, com ele já campeão mundial mas vivendo em Los Angeles quase em penúria, ela enviou seus cheques da Seguridade Social para ajudá-lo. Em seu testamento, estabelece que seja entregue “a meu filho Robert, quaisquer itens que ele possa pedir”.

Como disse Frank Brady, não apenas biógrafo, mas amigo na adolescência de Fischer, “o coração de Regina sempre esteve, realmente, do lado esquerdo”. Mais do que isso: ela jamais achou que devia alguma satisfação ao establishment. Em 1957, por exemplo, ela escreveu diretamente ao primeiro-secretário do PCUS, Nikita Kruschev, pedindo que convidasse Bobby para o Festival Mundial da Juventude. Kruschev respondeu, enviando o convite – que chegou tarde demais para que Bobby viajasse (cf. Bill Wall, “Robert James (Bobby) Fischer”).

Porém, um ano depois, ele seria convidado a ir a Moscou, onde esteve com Petrosian – mas queixou-se de que não conseguiu encontrar-se com outros mestres soviéticos. Foi depois dessa viagem que o FBI suspeitou que ele fosse um espião recrutado pelos soviéticos. Fischer tinha 15 anos...

Regina teve uma vida difícil, perdendo empregos devido às entrevistas que o FBI promovia sobre ela com vizinhos, colegas e patrões. Mas dedicou-se sempre às causas em que acreditava. A última anotação, em 1973, nos papéis já conhecidos do FBI, é sobre sua oposição à Guerra do Vietnã. Nessa época, Fischer já era campeão do mundo. Mas sua mãe já não era mais enfermeira. Havia, em 1968, realizado o sonho de sua juventude: formou-se, aos 55 anos, em medicina – pela Universidade Friederich Schiller, na Alemanha Oriental. Depois, exerceu sua profissão na América Central. Morreu em 1997, aos 84 anos. Quatro anos antes, aos 85, Hans Gehardt havia falecido em Berlim.

Agora, voltemos ao match Petrosian-Botvinnik e aos seus desdobramentos posteriores. O que faremos na próxima parte de nosso artigo.
Carlos Batista Lopes.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).
REFERÊNCIA:
http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias08.htm

ARTIGO 159 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ 7 (ANO I, Nº 16. DE 21 A 30 DE ABRIL DE 2010).

O artigo de Fischer, “How the russians fixed world chess” (“Como os russos fraudam o xadrez mundial”), publicado na “Sports Illustrated” em agosto de 1962, pode ser resumido rapidamente: durante o Torneio de Candidatos de Curaçao, realizado dois meses antes, os soviéticos (havia cinco entre os oito competidores: Tahl, Petrosian, Keres, Geller e Korchnoi) combinavam os resultados, em geral empatando rapidamente entre si, enquanto jogavam para valer contra os outros, isto é, contra Fischer (nitidamente, ele não estava muito preocupado com os outros participantes não-soviéticos: o húngaro-americano Pal Benko e o tcheco-eslovaco Miroslav Filip. Mas como ninguém achava que o excelente Filip tivesse chances, muito menos Benko, a questão se resumia, realmente, a Fischer).

Assim, era através da trapaça que, supostamente, os soviéticos conseguiam vencer torneios e, sobretudo, manter o título de campeão mundial. Por conseqüência, essa também era a razão de Fischer não haver saído de Curaçao como o desafiante de Botvinnik: os soviéticos, isto é, os comunistas, trapacearam para impedi-lo.

Note-se que, pelo menos explicitamente, Fischer não está se queixando de que os soviéticos se ajudavam mutuamente na análise de suas partidas, o que era público – e lícito. O próprio Botvinnik, na análise de sua única partida com Fischer (ocorrida no mesmo ano, na Olimpíada de Varna), declarou que obtivera o empate numa situação desfavorável, devido a uma idéia de seu colega Efim Geller. Explicitamente, não é disso que Fischer se queixa – embora esta nos pareça a verdadeira razão de seu inconformismo, como veremos até o final desta parte de nosso artigo.

A queixa explícita de Fischer é a de que os soviéticos combinavam seus resultados, o que não era lícito. Além disso, segundo ele, durante seus jogos os soviéticos rodeavam a mesa e, ignorando que entendia o idioma russo, davam sugestões e/ou instruções aos compatriotas que o enfrentavam, e o atrapalhavam com a tagarelice. Como este problema poderia ser resolvido simplesmente com uma queixa ao árbitro, não nos deteremos nele – assim como não se detiveram nenhum dos que apoiaram Fischer, exceto fugazmente.

No entanto, a primeira acusação perdurou por longos anos e, na verdade, ainda perdura. Ela ainda é, com as copiosas ampliações de Kasparov, uma das bases da campanha anti-comunista – e não apenas no xadrez. Livros e autores que se pretendem muito sérios, continuam repetindo-a. (v., p. ex., o livro de 2005 do GM holandês Jan Timman, “Curaçao 1962 - The Battle of Minds That Shook the Chess World” - e esse autor não é apenas Grande Mestre, mas um ex-candidato a campeão mundial, e editor-chefe da “New in Chess”, hoje, provavelmente, a mais lida revista sobre xadrez).

Sobretudo, a acusação de Fischer foi o pretexto para um atropelo geral nas regras do campeonato mundial. A FIDE, sob pressão norte-americana, acabou com o Torneio de Candidatos, substituindo-o por matches entre os pretendentes ao título – ou seja, tratou como verdadeira a acusação.

O problema, evidentemente, não era que as regras não podiam ser alteradas. O problema é que quando elas são alteradas sob um pré-julgamento contra um dos lados em disputa – uma disputa que, inclusive, ia bem além do xadrez – e a favor de outro, está aberto o caminho para que ninguém respeite regra alguma. Assim, a alteração das regras, que começara com a revogação do direito do campeão ao match-revanche, deu mais um passo em direção à anarquia que seria alcançada com a cisão de Kasparov, em 1993.

O pior de tudo, provavelmente, foi que a acusação de Fischer colocou em defensiva não somente os soviéticos, mas pessoas que estavam bastante longe de concordar com a propaganda anti-comunista. O autor destas linhas deve confessar, honestamente, que foi um desses.

Mas isso não aconteceu por acaso: mesmo hoje, basta uma releitura do artigo de Fischer para perceber que o autor não está mentindo, pelo menos não no sentido em que, em geral, se usa a palavra “mentira”. Ele realmente tinha convicção no que dizia. Essa é a força maior do texto, pois não é uma experiência comum para a maioria das pessoas travar contato com alguém convicto, não de uma crença, mas de um fato, e, ao mesmo tempo, o suposto fato não ser verdade.

Para dificultar ainda mais a distinção entre fato e fantasia, entrou em cena a máquina da mídia e dos órgãos governamentais norte-americanos. Pouco tempo antes, em 1958, o FBI desconfiara que Fischer havia sido recrutado como espião pelos soviéticos. Agora, haviam conseguido um propagandista ideal, ainda que inconsciente (ou ideal por causa disso mesmo): alguém que acreditava no que dizia, e contava uma história, digamos, plausível.

Nessa época, evidentemente, não se sabia que o FBI vigiava a família de Fischer desde a década de 40. Os documentos referentes a isso somente seriam liberados, com inúmeras tarjas negras sobre o texto, em 2002.

A última dificuldade foram os desmentidos soviéticos (inclusive os de Keres e Petrosian), que não ajudaram a elucidar a questão. Eram desmentidos - o que é outro sinal da defensiva dos soviéticos a partir de Kruschev - genéricos. Não demoliam ou desmontavam as alegações do oponente – o que, sem dúvida, é o caminho seguro para a derrota, mesmo quando se está com a verdade, e o adversário, com a mentira. Se a verdade pudesse se impor somente porque é verdade - ou seja, sem o esforço dos que estão com ela para desmascarar a mentira – o nazismo e o macartismo não teriam existido, e o mundo de hoje seria um maravilhoso Shangri-La. Mas não é assim, sem luta, que as coisas funcionam.

CURAÇAO

Examinemos as alegações.

Em seu artigo, Fischer excetua Tahl da conspiração soviética. Até ele reparou que incluí-lo transformaria, antes de tudo para si próprio, a acusação num absurdo. Se há algo que Tahl jamais faria, era, precisamente, combinar um empate. Além disso, depois de 21 rodadas, ele abandonou o torneio, por motivos de saúde – e Fischer visitou-o no hospital, sendo recebido de forma muito amistosa pelo ex-campeão mundial. Portanto, para acreditar na conspiração, Fischer tinha que colocar Tahl fora dela.

Porém, como observou o enxadrista e escritor holandês Tim Krabbé, também é necessário excetuar Korchnoi – não exatamente, como diz Krabbé, porque ele sempre negou, mas por razões políticas e também porque até hoje ninguém conseguiu incluí-lo nessa história (V. Tim Krabbé, “The legend of the Curaçao conspiracy”, in “Open Chess Diary”, nota 299, de 22/10/2005).

Com isso, a conspiração fica reduzida ao envolvimento de três jogadores soviéticos: Petrosian, Keres e Geller. Novamente, como em 1948, é sobre Keres que se concentra a intriga. Recentemente, buscou-se o apoio de Yuri Averbakh (coisa, aliás, bastante fácil – v. parte 5 deste artigo) para dizer que “é claro que foi tudo manipulado” para prejudicar Keres (entrevista de Averbakh para a Schaaknieuws, cit. por Krabbé).

De onde se conclui que, em Curaçao, 1962, teria existido não apenas uma, mas duas conspirações soviéticas: uma, com a participação de Keres, contra Fischer; a segunda, dos outros soviéticos contra o próprio Keres...

Ao leitor que porventura comece a achar, como nós, que essa história é excessivamente absurda, pedimos um pouco de paciência. Lembremos que a suposta autoridade de Averbakh, nesse caso, estriba-se no fato de que ele estava em Curaçao como integrante da delegação soviética. Segundo diz, “os russos” não queriam Keres como desafiante do campeão, porque era um estoniano, nem Geller, porque era um ucraniano de origem judaica - portanto, o vencedor, escolhido de antemão, e favorecido pela trapaça, foi Petrosian.

O problema dessa versão “étnica”, ou, melhor, dessa versão em que os soviéticos (isto é, os comunistas, ou, “os russos”) trapaceavam por racismo, é que Petrosian era armênio. “Porque razão um estoniano e um judeu ucraniano (e o judeu russo Korchnoi!) não eram convenientes e um armênio era, Averbakh deixou, melancolicamente, de dizer”, observa Krabbé em seu “Open Chess Diary”.

Nós acrescentaríamos algumas outras perguntas, sobre o que Averbakh “deixou de dizer”:

1) Por que razão um russo de origem judaica, como Botvinnik, podia ser campeão do mundo, mas um outro russo de origem judaica, Korchnoi, não podia ser o seu desafiante?

2) Por que razão, numa época em que o principal dirigente da URSS, Kruschev, era mais ucraniano que russo, um ucraniano de origem judaica, Geller, não podia ser o desafiante do campeão?

3) Por que razão uma nação báltica, a Letônia, podia ter um campeão do mundo, Mikhail Tahl, mas outra nação báltica, a Estônia, não podia ter Paul Keres como desafiante do campeão?

4) Por último: por que razão um judeu de ascendência alemã – o próprio Averbakh – podia ser presidente da Federação Soviética de Xadrez, mas ucranianos e russos de origem judaica, assim como estonianos, não podiam ser desafiantes do campeão do mundo?

EMPATE

A duas rodadas do fim do torneio, Keres estava em primeiro lugar. Era o virtual desafiante. Foi então que perdeu, não para um soviético, mas para o americano Pal Benko. Aliás, Keres somente perdeu duas partidas em Curaçao, ambas para norte-americanos - Fischer e Benko. Foram essas duas derrotas que o impediram de ser o desafiante do campeão – as duas, para os únicos jogadores norte-americanos presentes ao torneio.

Averbakh não diz que Keres perdeu de propósito, até porque isso seria insustentável diante da partida com Benko, mas afirma que a sua derrota “foi um alívio” para a delegação soviética, que assim não teria que se expor, recorrendo a algo mais escandaloso... Portanto, Averbakh está propugnando que a prova de que existiu a “manipulação”, consiste em que não foi necessário recorrer a ela. Em bom português (mas em péssima lógica): a prova de que “foi tudo manipulado” para excluir Keres é que a manipulação não aconteceu, mas aconteceria, se ele não perdesse para Benko...

Mas, continuemos: uma das provas cruciais apresentadas por Fischer da existência de uma conspiração soviética contra si é a partida de Keres contra Petrosian, na 25ª rodada. Nessa partida, houve um empate em apenas 14 jogadas, algo, aliás, nada raro na trajetória de Petrosian – mais ainda, faltando três rodadas para o final, com os jogadores próximos da exaustão, sobretudo em um torneio no qual cada um enfrentava 4 vezes o mesmo oponente.

Segundo Fischer (e Timman, no livro de 2005), esse empate prova a sua tese, pois a partida estava ganha para um dos lados, e, no entanto, eles empataram rapidamente. Na análise, tanto Fischer quanto Timman procuram demonstrar, o que parece certo, que a partida estava ganha para as negras.

O problema, como ressaltou o GM inglês Raymond Keene, autor de “Petrosian vs the Elite” (Batsford, Londres, 2006), é que quem estava jogando com as negras era Petrosian, e não Keres. Portanto, se Petrosian aceitou ou propôs o empate, numa posição ganhadora, livrou Keres de uma derrota. Ou seja, o jogador estoniano foi beneficiado com a suposta conspiração, da qual, segundo Averbakh, era a vítima. Sobre isso, Krabbé faz outra excelente pergunta: “Se Petrosian era o indicado para ser o vencedor, e Keres não devia vencer, então, o que poderia ter sido mais fácil do que fazer Keres perder essa posição perdida, e dar o ponto a Petrosian?”. Pelo visto, as conspirações dos comunistas no xadrez eram só para empatar, mesmo que isso livrasse suas vítimas da derrota...

Entretanto, poderia acontecer que o empate de Petrosian e Keres tivesse o objetivo de prejudicar Fischer. Aliás, é o que se entende em seu artigo para a “Sports Illustrated”. Portanto, voltemos, aqui, à primeira conspiração.

Na 25ª rodada, quando foi jogada essa partida, Fischer já não tinha chance alguma, nem mesmo teórica, de ser o vencedor do torneio. Estava em quarto lugar, onde permaneceu até o fim do torneio. Já havia perdido para Petrosian, Keres, Geller (duas vezes), Korchnoi, e até mesmo para o seu naturalizado compatriota, Pal Benko. À sua frente estavam, e ficaram, precisamente, os três jogadores soviéticos sobre os quais ele lançou a acusação de trapaça: Petrosian, Keres e Geller. Logo, resta descobrir os motivos dos soviéticos para conspirar contra Fischer, a ponto de fraudar uma partida entre seus dois principais jogadores, numa situação em que o suposto alvo da conspiração já havia saído da pista, e em um jogo onde, se Petrosian vencesse, ao invés de empatar, aumentaria mais a diferença a seu favor, em relação ao jogador norte-americano.

Mas, examinemos outra hipótese. Poderia acontecer que Fischer, em algum momento anterior do torneio, estivesse com chances de ser o vencedor e tenha sido alijado pela conspiração soviética. No entanto, não foi isso o que ocorreu. No início do torneio, Fischer estava mal – começou perdendo as duas primeiras partidas, para Benko e para Geller. Na 14ª rodada, isto é, na exata metade do torneio, Fischer estava atrás de cinco jogadores soviéticos: Petrosian e Geller, em primeiro; Keres, em segundo; Korchnoi, em terceiro.

Mais especificamente: os dois primeiros estavam com 9 pontos; o segundo com 8,5; o terceiro com 8 pontos; e, Fischer, com 7 pontos. A única chance que Fischer tinha de superar os líderes, era se os soviéticos empatassem entre si. Foi, precisamente, o que ocorreu. Ou seja, mais uma vez, se a conspiração tivesse existido, teria sido a favor de Fischer.

A partir daí, o problema de Fischer foi que, mesmo com os empates dos soviéticos dando-lhe uma chance de ser o vencedor, ele perdeu para Keres (21ª rodada) e, embora haja vencido Korchnoi e Geller na 19ª e na 23ª rodadas, empatou duas vezes com Petrosian e também empatou a quarta e última partida tanto com Keres quanto com Geller. Ou seja, não conseguiu superar os jogadores soviéticos, exceto Korchnoi.

Reproduzimos a conclusão de Krabbé: “a forma de Fischer não era boa o suficiente para aproveitar essa vantagem [o empate entre os soviéticos] em seu benefício. Não há razão para pensar que em Curaçao havia algo além de que Geller, Keres e Petrosian, tendo grande respeito uns pelos outros, pensaram em alguns dias de descanso extra, e Petrosian teve mais sorte – ou, talvez, fosse o mais forte. Fischer nunca foi um problema”.

Porém, não havia sido apenas com os soviéticos que Fischer se chocara em Curaçao. Na 5ª rodada, Fischer e Benko adiaram a continuação de suas partidas. Só havia um “segundo” para analisar seus jogos adiados, o GM e ex-campeão norte-americano Arthur Bisguier, pois a Federação dos EUA não havia liberado dinheiro para contratar outro.

No dia seguinte, Fischer dirigiu ao comitê organizador do torneio um pedido para que Benko fosse “penalizado e/ou expulso do torneio”. Transcrevemos a fundamentação, porque ela é importante para avaliar o grau de maturidade de Fischer, com 19 anos na época: “Na noite de 9 de maio, um pouco antes da meia-noite, Benko entrou pelo quarto sem minha permissão (....). Eu imediatamente pedi a ele para sair e ele recusou-se. Eu repetidamente pedi que saísse e ele recusou-se a cada pedido. Ele ficou furioso quando recusei-me a permitir que meu segundo, Arthur Bisguier, o ajudasse a analisar seu adiamento com Petrosian. Ele insultou-me e, quando eu respondi, atacou-me quando eu estava sentado numa cadeira. Eu não revidei. Então, finalmente, ele deixou o quarto” (Hanon W. Russell, “The Fischer-Benko Slapping Incident”).

Posteriormente, Arthur Bisguier exporia o cerne da questão nesse conflito de Fischer com Benko, o que também esclarece muito a respeito do conflito com os soviéticos. No fundo, era a mesma questão: “Apesar de que eu expressei minha disposição de também trabalhar para Benko, Fischer insistiu em que eu fosse unicamente seu segundo. Sua justificativa era que o Torneio de Candidatos é um torneio individual, não um evento de equipes, e Benko era outro oponente em perspectiva”.
Carlos Batista Lopes.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).
REFERÊNCIA:
http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias07.htm

ARTIGO 158 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ 6 (ANO I, Nº 16. DE 21 A 30 DE ABRIL DE 2010).

Misérias e Glórias do Xadrez - 6.
Carlos Batista Lopes.

Página inicial.


Kasparov parece ter escolhido o local adequado para iniciar sua campanha a presidente da Rússia: em Washington.

Mestre Hélder Câmara envia-nos a coluna de xadrez do “Washington Post” - que tem, como titular, Lubomir Kavalek, GM tcheco-americano. Na segunda-feira, dia 15, o colunista noticia que Kasparov está em Washington para lançar, no dia seguinte, seu novo livro, “How Life Imitates Chess” (“Como a Vida Imita o Xadrez”).

O título é bastante sintomático, inclusive pela estupidez: como pode a vida imitar algo que é parte dela mesma? Ou será que o xadrez não faz parte da vida? Não é impossível que Kasparov tenha essa última opinião, uma vez que não sabe o que é a vida, porém o mais provável é que não se preocupe com essas minudências. No entanto, é evidente porque a vida tem de imitar o xadrez: para que ele seja presidente da Rússia, assim como foi campeão em xadrez. Para isso, vale tudo, inclusive publicar livros com títulos estúpidos.

No entanto, nos parece que ele, mais uma vez, subestima a inteligência dos outros - nesse caso, dos eleitores russos.

O lançamento em Washington é, naturalmente, para mostrar aos russos como o autor é respeitado pelo mundo. Não é uma surpresa que ele confunda o mundo com os EUA. E, mais ainda, que confunda o incensamento de seu ato de vassalagem com respeito. O que mostra, apenas, que também não sabe o que é respeito. Mas isso o leitor poderá comprovar por outros acontecimentos, nas próximas seções do nosso relato.

O GOLPE.

Voltemos a Botvinnik. No Congresso da FIDE de 1959, ele, subitamente, tomou conhecimento da campanha que se desenvolvia “às suas costas”. A questão de abolir o direito do campeão ao match-revanche não estava na pauta divulgada antes do Congresso, o que era obrigatório. Também não havia sido discutida na diretoria – e por uma razão que hoje parece evidente: pelas regras de então, o campeão mundial era membro da diretoria da FIDE.

Botvinnik parece ter ficado completamente surpreso quando Folke Rogard, o sueco que presidiu a FIDE por 21 anos (1949-1970), propôs a revogação do direito ao match-revanche. Mais surpreso ainda deve ter ficado – é o que sugere o tom com que posteriormente abordou a questão – quando a delegação soviética não se opôs. Rogard, que sempre considerou um incômodo a hegemonia soviética, havia tentado acabar com o match-revanche em 1955, durante o Congresso de Gotemburgo. Mas, depois da defesa de Botvinnik, apoiado pela delegação soviética, a proposta contara com apenas um voto, além de Rogard. No entanto, algo mudara entre 1955 e 1959...

Não se tratava de um problema de justiça formal e abstrata (a argumentação era a de que o match-revanche obrigava um desafiante a ganhar dois matches do antigo detentor do título, em vez de apenas um).

Concretamente, a medida era diretamente dirigida contra Botvinnik. Como diria um advogado, faltava a ela a característica da “impessoalidade”, requerida pelo bom Direito. E não apenas porque só havia um único jogador sobre a face da Terra que podia reivindicar o direito que foi abolido.

No centro do método de Botvinnik estava um rigoroso estudo e uma rigorosa disciplina. Mas ele não era somente um enxadrista. A idéia – por sinal, monstruosa - de que jogadores de xadrez somente devem se preocupar com xadrez ainda não havia obtido o beneplácito atual. Ela seria, alguns anos depois, talvez a pior herança que Fischer deixou ao xadrez. Mas, em 1959, não era algo que parecesse razoável – como, aliás, não é.

Como todos sabiam, Botvinnik era também um pesquisador em áreas de fronteira da ciência e da tecnologia. Para disputar o match com Bronstein, interrompera suas pesquisas sobre geradores sincrônicos. Para enfrentar Smyslov, tivera que deixar de lado, por longos meses, o seu trabalho com motores à corrente alternada. Seu trabalho como pesquisador, em geral, interrompia sua participação em competições, o que não favorecia sua forma no primeiro match. A revanche era, justamente, sua oportunidade de dedicar um ano ao estudo do xadrez – e aí retomar o título. Sem ela, Botvinnik teria que enfrentar um problema a mais – e não era um problema pequeno, sobretudo na sua idade – para manter o título.

Tanto a extinção desse direito tinha um alvo certo, que, na hora de efetivar a medida na presença do próprio Botvinnik, a FIDE acabou por adiá-la: não valeria para a próxima disputa, só sendo instituída em 1963.

Porém, aqui, é necessário entender porque a delegação soviética permitiu – e apoiou - um ataque direto à sua maior glória no xadrez. O problema não se explica apenas pela pressão de jogadores soviéticos aspirantes ao título, como Botvinnik deixa entender no terceiro volume de suas “Partidas Selectas”, embora observando que esta pressão “não era só dos meus colegas”. Também não se explica completamente pelo ódio dos kruschevistas a todo e qualquer “símbolo do stalinismo”, inclusive Botvinnik, uma vez que esse atropelo na FIDE era um desprestígio não para Stalin, que já havia falecido, mas para a URSS e, por conseqüência, para os seus dirigentes daquela época.

A atitude soviética na FIDE, a partir da segunda metade da década de 50, era parte daquela política de apaziguamento em relação aos países imperialistas, sobretudo em relação aos EUA, que se tornara política oficial na URSS com Kruschev, especialmente após o XX Congresso do PCUS, em 1956 - e que, levada ao extremo por Gorbachev, acabaria numa catástrofe.
Não sabemos o grau de consciência a que Botvinnik chegou sobre a questão, mas é significativo que ele, em suas memórias publicadas em 1978, se detenha num acontecimento, pouco anterior à decisão da FIDE, em que isso é claro.

Na Olimpíada de Xadrez de Munique (1958), os norte-americanos fizeram uma proposta indecente. Seu primeiro-tabuleiro, Samuel Reshevsky, recusava-se a jogar aos sábados por motivos religiosos. Assim, eles propuseram aos soviéticos que seu primeiro-tabuleiro, Botvinnik, também não comparecesse ao match URSS-EUA. Assim, ambos pontuariam em branco, e a agenda seria cumprida. O único obstáculo a isso era Botvinnik: “Recusei-me a pontuar em branco, a despeito da pressão sobre mim do chefe de nossa delegação, D. Postinikov, e do capitão da equipe, A. Kotov. Eles alegavam estar com medo de que os americanos ameaçassem parar de jogar na Olimpíada e retornar para casa. Enquanto nós estávamos discutindo (isso foi no foyer do Hotel Metropol), o presidente [da entidade] dos jogadores da Alemanha Ocidental, E. Dehne, estava sentado próximo. 'Por que vocês têm medo de que os americanos vão embora? Quem tem que ter medo disso é Dehne, então, consultem-no', eu disse aos meus superiores. 'Se os americanos querem ir embora, então, que vão', disse o alemão, de um modo calmo. Obviamente, eu joguei no match contra os EUA!” (grifo nosso).

TAHL.

No mesmo ano em que Smyslov conquistava o título mundial contra Botvinnik, 1957, o Campeonato Soviético foi vencido por Mikhail Tahl, um jovem de Riga, Letônia, então com 20 anos.

Tahl foi, provavelmente, o maior tático e o maior jogador de ataque da história do xadrez. São impressionantes, até hoje, seus sacrifícios de peças, as soluções que pareciam impossíveis em determinadas posições e, não menos importante, sua capacidade de ser bem sucedido em blefar, num jogo que parece pouco propício para isso (o próprio Tahl descreveu implicitamente essa capacidade, na sua maneira bem humorada: “Há 3 tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus”).

Independente de sua solidez, isto é, da profundidade ou coerência lógica das suas linhas de jogo, as partidas de Tahl até hoje provocam um prazer estético especial em quem as refaz. Foi com esse estilo espetacular que ele venceu seis vezes o Campeonato Soviético, marca que só foi atingida por um outro único jogador, Mikhail Botvinnik.

Em seu livro autobiográfico, no qual aborda sua experiência como engenheiro, pesquisador e enxadrista, Botvinnik, sucintamente, destrincha aquilo que nas décadas de 50 e 60 era considerado um mistério - o estilo “mágico” de Tahl, chamado, por essa razão, “o bruxo de Riga”: “do ponto de vista da cibernética e da ciência da computação, Mikhail Tahl é um aparato de processamento de dados, um aparato que possui um banco de memória maior e uma velocidade de resposta mais rápida do que os de outros grandes mestres. Isso tem importância decisiva nos casos em que as peças têm grande mobilidade no tabuleiro. Tahl não estava muito interessado em avaliar objetivamente a posição em que estava metido. Podia mesmo ser que, objetivamente, ele ficasse pior ali, mas se somente suas peças estavam móveis, as ramificações de variantes são tão extensas, tão grande é o número de jogadas nessas ramificações, que o oponente não podia dar conta delas e a rápida reação e memória de Tahl falariam mais alto. Essa é a base completa do incomum, do fantástico jogo de Tahl. Ele é baseado em fatores perfeitamente prosaicos” (“Achieving the Aim”, pág. 158 – uma nota: traduzimos o termo técnico “analytical tree” por “ramificações” porque este não é um texto destinado apenas aos enxadristas).

Mas essa compreensão de Botvinnik sobre o jogo de Tahl, é forçoso ressaltar, somente apareceu 18 anos após o primeiro match entre os dois.

Sob alguns aspectos, o jogador letão, um professor de literatura, era o oposto de Botvinnik: fumante inveterado, mais do que chegado a um copo, dado ao que chamou de “caça às moças”, indisciplinado a ponto de escapar à noite da concentração e levar uma garrafada na cabeça numa boate em Havana, com tendência a jogar para a platéia, desprezando a abordagem científica em xadrez (“xadrez é arte”), sempre disposto a fazer a tática sobressair em relação à estratégia. Não por acaso, Smyslov, um estrategista, disse que o estilo de Tahl “não era mais do que um conjunto de truques”.

Essa não era a opinião de Botvinnik, que compreendia melhor do que Smyslov a verdade enunciada por Lasker no final do século XIX: “xadrez é luta”. Se é lícita a comparação, Tahl é o Garrincha do xadrez (até em certas tiradas eles se parecem: em 1958, um jornalista perguntou-lhe quando seria campeão do mundo. Resposta: “primeiro preciso combinar com os outros grandes mestres”). Todos gostavam dele, até mesmo o próprio Smyslov, e outros jogadores que em tudo eram opostos – foi muito amigo de seu antípoda perfeito no xadrez, o futuro campeão Tigran Petrosian. Aliás, até Fischer, o que é quase um milagre, considerando-se a hostilidade deste em relação aos jogadores soviéticos – e não só aos soviéticos.

Em 1958, além de vencer outra vez o campeonato da URSS, Tahl venceu o Torneio Interzonal de Portoroz, Iugoslávia, qualificando-se para o Torneio de Candidatos. No ano seguinte, ele venceria também esse torneio, e com um resultado espetacular: no confronto direto (os jogadores disputavam quatro partidas entre si), ele venceu 4 vezes Bobby Fischer, 2 vezes Smyslov e 3 vezes o iugoslavo Gligoric – provavelmente, na época, o jogador mais forte fora da URSS. Apenas o segundo colocado, Paul Keres, conseguiu um score favorável no confronto com Tahl – 3 vitórias e uma derrota.

Desafiante de Botvinnik, venceu-o em 1960 – derrotou o veterano campeão em 6 partidas, perdeu em apenas duas, e fechou o match já na 21ª partida, três antes do limite de 24 partidas. Era, depois disso, o mais jovem campeão mundial, até então.

Mas ainda havia o match-revanche. E Botvinnik, apesar da diferença de idade – 25 anos a favor de Tahl - resolveu enfrentá-lo. Não possuía toda a compreensão do jogo de Tahl que adquiriu depois, mas considerou suficiente a que, então, conseguiu chegar. Como escreveu, nas “Partidas Selectas”: “analisando o encontro sob um enfoque criativo, nosso [primeiro] match também proporcionou abundante material para identificar as debilidades de jogo do jovem campeão. Inclusive quando não estava em consonância com o espírito da posição, Tahl se esforçava para agudizar o jogo. Lançava-se em posições difíceis, só para alcançar maior mobilidade para suas peças, com o que podia mostrar sua capacidade única para o cálculo de variantes, assim como... a falta de tempo do adversário para pensar as jogadas. Este enfoque utilitário em relação ao xadrez lhe assegurou êxito, mas a um preço muito alto. Fechou-se em um estilo de jogo unilateral, estreitou as possibilidades criativas e engendrou a possibilidade de um futuro fracasso”.

Porém, em 1961, Botvinnik era o único a fazer esse julgamento. As previsões eram todas a favor de Tahl, um jogador de quem Fischer disse ao iugoslavo Dimitrije Bjelica: “Pode-se esperar qualquer coisa de Tahl” (cf. o livro de Bjelica, “Bobby Fischer”, na série “Kings of Chess”). A imprensa soviética estava toda por Tahl e contra Botvinnik. Um dos poucos torcedores que este ainda mantinha era Leonid Brezhnev, na época presidente do Soviet Supremo. Mas, como Brezhnev disse depois a Botvinnik, foi uma torcida solitária dentro de sua própria casa...

Infelizmente, já nessa época a frágil saúde do jovem campeão começou a tornar-se um problema. Tahl era portador, ou era acometido periodicamente, de uma série de doenças, entre as quais um problema renal que o acompanhou até a morte – ocorrida em junho de 1992, após, no dia anterior, fugir do hospital, comparecer a um torneio em cadeira de rodas, e vencer a partida com um brilho que lembrava o jovem do final da década de 50. Como lembrou, numa entrevista em 2003, sua primeira mulher, Sally Landau, um mês antes, em outra fuga do hospital, ele havia sido o único a derrotar Kasparov, então no auge, no Torneio de “Blitz” (partidas rápidas) de Moscou.

Com a notícia de que Tahl estava doente em Riga, Botvinnik propôs um adiamento, desde que o campeão, de acordo com as regras, apresentasse um atestado médico. Tahl recusou o adiamento. Provavelmente, ele sabia, ou sentia, que se tivesse de esperar pela recuperação completa, nunca mais jogaria xadrez em competições.

O match foi algo espetacular, mas não à maneira de Tahl. Nesse match, Botvinnik conseguiu aquilo que não conseguira no match com Bronstein: mostrar como um estrategista pode enfrentar e vencer um jogador tático – nesse caso, um tático bem maior do que Bronstein.

Simplesmente, ele não deu – ou quase não deu – oportunidade para que Tahl exercesse seu talento: “eu resolvi jogar trabalhando em duas direções: (1) aprender com Tahl a como ser um bom e astuto prático, e, (2) preparar o tipo de aberturas, e, associados a elas, planos de meio-jogo, em que a luta é de natureza fechada, o tabuleiro é cindido em seções separadas, as peças não são demasiado móveis. Nunca pensar se a minha posição é objetivamente pior nesse caso. Pelo menos meu oponente não seria capaz de explorar sua rápida reação e memória (e [assim] minha compreensão das posições falaria mais alto)” (“Achieving the Aim”, pág. 161).

O match foi no terreno escolhido por Botvinnik – e, nesse terreno, a estratégia, ele era, realmente, e apesar da idade, superior a Tahl. Com 10 vitórias contra 5, o match terminou com a recuperação do título – e Botvinnik já estava com 50 anos, uma idade avançada para um campeão mundial.

FISCHER.

No Torneio de Candidatos de Curaçao, em 1962, o armênio Tigran Petrosian saiu vencedor.

Porém, logo que foi encerrado o Torneio de Curaçao, e antes do match de Petrosian com Botvinnik, a revista americana “Sports Illustrated”, em agosto de 1962, publicou um artigo que estabeleceria o eixo da campanha anti-soviética no xadrez pelas décadas seguintes. A força especial do artigo era dada pelo seu autor, o único jogador americano em condições de enfrentar os melhores jogadores soviéticos, Robert James Fischer – ou, simplesmente, Bobby Fischer. Por isso, é necessário que nos detenhamos agora nele – o que faremos na próxima edição.
Carlos Batista Lopes.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).
REFERÊNCIA:
http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias06.htm

ARTIGO 157 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ (ANO I, Nº 16. DE 21 A30 DE ABRIL DE 2010).

Misérias e Glórias do Xadrez - 5
Carlos Batista Lopes

Página inicial


A propaganda anti-soviética em torno do match Botvinnik-Bronstein não teria maior importância se não fossem as declarações posteriores de Bronstein. É nelas, e nas de Yuri Averbakh, que se baseia o atual qüiproquó sobre o assunto. Por isso, vale a pena um rápido exame dessas declarações. Na verdade, nos limitaremos a uma declaração de Bronstein, que nos parece especialmente elucidativa.

Em “Aprendiz de Feiticeiro”, Bronstein, na ânsia por mostrar que os comunistas são trapaceiros, diz, sobre sua escolha como desafiante de Botvinnik, em 1950: “Isaac Boleslavsky estava liderando o Torneio de Candidatos, mas, depois de uma conversa com Boris Vainstein [então presidente da Federação Soviética de Xadrez], decidiu maneirar [to slow down – literalmente, “dar uma freada”] para permitir-me empatar com ele em primeiro lugar” (“The Sorcerer’s Apprentice”, pág. 107, Cadogan Books, 1995).

Em suma, Bronstein está dizendo que os soviéticos roubaram, isto é, trapacearam, a seu favor. Resta saber porque os comunistas iriam trapacear a favor de um anti-comunista, filho de um condenado por conspiração contra o Estado, preterindo um jogador (Boleslavsky) que não tinha nenhum desses problemas – e que sempre mostrou um respeito por Botvinnik de que Bronstein era realmente incapaz.

Resta saber, também, porque iriam trapacear para que o desafiante do campeão fosse um jogador que, fora de dúvida, ele teria muito mais dificuldade em vencer, se a intenção deles (essa é a tese de Bronstein) era facilitar a vitória de Botvinnik. Como observa Taylor Kingston, comentando o mesmo trecho do livro de Bronstein, em 1950 o retrospecto de Botvinnik era ruim em relação a Bronstein (uma derrota, um empate e nenhuma vitória), mas não em relação a Boleslavsky (7 vitórias, 4 empates e nenhuma derrota).

Então, qual o sentido dos soviéticos trapacearem a favor de Bronstein? Para complicar a vida de quem eles queriam que ganhasse? Ou para se arriscar a ter mais uma dor de cabeça – um “dissidente” como campeão do mundo, no esporte mais popular do país?

Bronstein, nessa declaração, joga com o fato de que Boleslavsky era pai de sua terceira mulher, Tatiana. Logo, supõe-se, ele estaria informado da trapaça pela própria vítima. Mas, convenientemente, quando “Aprendiz de Feiticeiro” foi publicado (1995), já havia 18 anos que Boleslavsky não estava mais neste mundo. Porém, havia quase 40 anos (desde 1956) que qualquer declaração manchando a época de Stalin seria bem recebida pela imprensa e pela nova cúpula da URSS – sobretudo nos 10 anos anteriores, pois, desde 1985, Gorbachev era o secretário do PCUS. No entanto, essa declaração somente apareceu em 1995, alguns meses após a morte de Botvinnik.

FRACASSO

Porque Bronstein deu essa declaração ridícula, não é difícil de perceber. Ele não tinha como dizer – e, realmente, não disse – que o match com Botvinnik havia sido uma trapaça: os soviéticos permitiram até mesmo que ele levasse uma claque para a sala onde se realizava o match – e os árbitros, Opocenski (Tchecoslováquia) e Stahlberg (Suécia), deixaram até que ele regesse pessoalmente a claque, como na decisiva 23ª partida, para aplaudi-lo e hostilizar o oponente.

Bronstein também não podia dizer que, em algum momento do processo de sua escolha como desafiante, teria sido vítima de uma trapaça. Afinal, os soviéticos não fizeram objeções à sua participação no Interzonal - e ele ganhou tanto o Interzonal, quanto o Torneio de Candidatos. Assim, para mostrar que os soviéticos eram trapaceiros - e que, supostamente, ele tinha provas de tal coisa – não havia outra solução, senão escolher a si próprio como beneficiário da fraude e a seu falecido sogro como vítima, pois somente ele, Bronstein, e mais ninguém, teve um resultado superior ao de Boleslavsky. Logo, se houve trapaça, só poderia ser a seu favor. Portanto, a prova da trapaça dos soviéticos é a sua própria vitória na escolha do desafiante de Botvinnik.

Bronstein e algumas cabeças de alfinete que lhe seguiram não se aperceberam que, se essa história fosse verdade, ela, antes de tudo, provaria que os soviéticos da época de Stalin eram doidos varridos, que trapaceavam contra seus próprios interesses, para beneficiar os adversários...

As razões reais do fracasso de Bronstein foram sucintamente expostas por seu oponente: “Bronstein era na época indubitavelmente um jogador forte, mas seu talento era marcado por uma limitação. Ele era bom nas complicações do jogo de peças, e dispunha-as no tabuleiro de forma muito bem sucedida do ponto de vista das considerações gerais. (....) mas quando era necessária a precisão da análise para procurar exceções às regras, Bronstein não era tão forte. A análise precisa é necessária no final de jogo, quando um jogador não tem direito de cometer erros, exatamente como um sapador na guerra. Se Bronstein fosse forte nos finais, então, seguramente, eu teria perdido o match. Além disso, fui favorecido pelas deficiências humanas e competitivas do desafiante – uma inclinação para a excentricidade, afetação e ingenuidade em suas táticas de competição” (Botvinnik, “Achieving the Aim”, pág. 130, Pergamon Press, Londres, 1981 – a primeira edição russa é de 1978).

HELSINQUE

Uma sociedade dirigida por pessoas que admitem como verdadeira a versão de sua História forjada pelos que querem destruí-la, está, cedo ou tarde, destinada a ser destruída. Se foi isso o que ocorreu em geral na URSS, a partir de 1956, também foi verdade no restrito campo do xadrez soviético.

No terceiro volume de suas “Partidas Selectas” (usamos a edição Eseuve, em castelhano), Mikhail Botvinnik relata como, após sua derrota para Vassily Smyslov, em 1957, “sofri pressões para convencer-me de que não pedisse a revanche”. No entanto, o match-revanche fazia parte das regras da FIDE, em caso de derrota do campeão. “Depois da análise das partidas do match, resolvi não queimar incenso aos deuses (....). O match-revanche celebrou-se na primavera de 1958. (....) A preparação foi simples, o match perdido me proporcionou abundante informação. (....) Na 15ª partida eu já tinha vantagem de 4 pontos”. Botvinnik conta, em seguida, como, nesta partida, depois de obter posição ganhadora antes do adiamento, subestimou o oponente e, no dia seguinte, tendo que analisar durante a partida o que deveria ter analisado durante a noite, perdeu porque ultrapassou o tempo permitido: “em vez de 5 pontos de vantagem, tive de conformar-me com três. (....) mas conquistei o título de campeão”.

O que vem logo em seguida é ainda mais significativo: “Meus colegas (e não somente eles) mostraram seu descontentamento. Compreendiam que ainda que pudessem superar o campeão vigente num match, depois, em um match-revanche, a preparação se fazia notar... e, às minhas costas, começou uma campanha pela supressão do match-revanche” (grifo nosso).

Botvinnik não relaciona essas pressões e essa campanha com os acontecimentos políticos ocorridos após o XX Congresso do PCUS. Porém, nos parece evidente a relação: os kruschevistas, a partir de 1956, estavam alucinados em sua cruzada “anti-stalinista”. Queriam apagar tudo o que tivesse o nome de Stalin – ou lembrasse a sua época. O fato disso ser impossível, apenas os deixava mais histéricos.

Botvinnik, campeão soviético em 1931, 1933, 1939, 1944, 1945 e 1952, condecorado por Stalin após sua vitória de 1936 em Nottingham (a primeira de um jogador soviético no exterior), campeão do mundo em um esporte popular na URSS, e fundador da própria escola soviética de xadrez, era quase tudo o que eles detestavam: uma das personificações de uma época que eles, na impossibilidade de eliminá-la da História, queriam demonizar, o que faziam meramente repetindo, assumindo como verdadeira, a propaganda anti-soviética e anti-comunista da década de 30.

Foi então que começou a campanha contra Botvinnik, retratando-o como um ditador super-poderoso do xadrez soviético na época de Stalin. Uma idiotice completa. Basta lembrar a exclusão de Botvinnik da equipe soviética que jogou na 10ª Olimpíada de Xadrez, em Helsinque, 1952 – portanto, com Stalin ainda vivo. A exclusão foi articulada, entre outros, por Keres e Bronstein. Devido à campanha contra Botvinnik, da qual Kasparov tem sido um especial esbirro, relembramos brevemente os acontecimentos.

Durante o treinamento, a equipe foi chamada, subitamente, para comparecer à sede do Comitê de Esportes da URSS, na ausência de seu presidente, Romanov, que já estava em Helsinque – e que havia insistido para que Botvinnik, que mantivera recentemente o título mundial, fosse o primeiro-tabuleiro da equipe. Transcreveremos o relato de Botvinnik - e já diremos ao leitor porque este relato merece confiança:

“O primeiro a ser chamado para falar com Ivanov, vice-presidente do Comitê, foi Keres. Então, Keres saiu e eu fui chamado, acompanhado do pessoal encarregado das sessões de treinamento e do staff de xadrez do Comitê. Em minha presença foi dado um informe a Ivanov, segundo o qual tudo estava indo bem, exceto que os membros da equipe consideravam que Botvinnik estava jogando muito mal.

“Ivanov colocou-me a questão: ‘você pode garantir que será o primeiro lugar no primeiro-tabuleiro?’. Eu respondi: ‘peça a Keres para entrar, por favor’. Tinha se tornado claro para mim que Keres tinha acabado de dar tal garantia, em caso de substituir-me.

“Depois de alguma confusão na sala, foi decidido chamar Keres de volta. Ele apareceu, pálido e embaraçado. Eu percebi, então, que depois dessa ‘acareação’, Keres não seria capaz de jogar bem em Helsinque – ele é psicologicamente instável. Jogar não é a mesma coisa do que dar garantias!

‘Eu solicito que este assunto seja considerado numa reunião da equipe’, declarei. E foi onde se ficou naquele momento” (cf. “Achieving the Aim”, págs. 136/137).

Depois de uma noite em claro, na manhã seguinte, quando Botvinnik entrou nos sanitários do local onde os jogadores estavam concentrados, encontrou outro integrante da equipe, Vasily Smyslov. Fez a pergunta à queima-roupa: “Vasily Vasilyevitch, você informou que considera que eu não sei como jogar xadrez?”. Smyslov estava escovando os dentes. E continuou escovando os dentes. Depois, respondeu: “Eu não sabia que isso tudo viria à tona” (“Achieving the Aim”, pág. 137 – Smyslov está vivo, e, evidentemente, também estava em 1978, quando foi publicado este relato de Botvinnik. No entanto, nunca o desmentiu).

Então, aceitando a proposta de Botvinnik, o Comitê de Esportes reuniu a delegação: “Keres disse que Botvinnik estava em má forma, e que não era possível melhorar a forma rapidamente (ele esqueceu de acrescentar que é possível a alguém perder a forma rapidamente!). Bronstein disse que se Botvinnik estivesse para perder um peão, ele perderia o jogo, mas que, se Keres perdesse um peão, ele faria uma coisa ou outra para conseguir um empate (um sábio pensamento!). Smyslov e Kotov simplesmente exigiram que eu fosse excluído da equipe. Somente Boleslavsky manteve-se ao lado do campeão do mundo. Eu fui substituído na equipe por Geller” (quando este relato foi publicado na Rússia, dos participantes desta reunião, além de Smyslov, estavam vivos Bronstein e Kotov – nenhum desmentiu Botvinnik).

Sobre a má forma do campeão mundial em 1952, notemos, somente de passagem, que em dezembro desse ano, portanto apenas alguns meses depois dessa reunião (e dos sofríveis resultados de Keres como primeiro-tabuleiro da equipe soviética na Olimpíada), Botvinnik venceu pela sexta vez o Campeonato da URSS. Keres foi o 10º colocado; Smyslov, o 9º; e Bronstein, o 7º. Kotov não participou. Mas Boleslavsky foi o quarto colocado.

Além de Bronstein, a outra fonte da campanha contra Botvinnik é Yuri Averbakh, principalmente através de suas entrevistas, onde procura avalizar cada uma das calúnias presentes e passadas, mesmo àquelas que nem autores ocidentais insistem mais, e mesmo àquelas que se referem a acontecimentos em que é impossível que ele tivesse algum conhecimento de primeira mão.

As entrevistas atuais de Averbakh procuram passar a idéia, ainda que às vezes ambígua, de que ele foi um perseguido durante o socialismo. Nada mais longe da verdade. Averbakh foi, durante muito tempo, o editor-chefe da principal publicação soviética de xadrez – a revista “Xadrez na URSS” - e, depois, presidente da Federação Soviética de Xadrez. Em suma, depois de ter sido um bom jogador (foi campeão da URSS em 1953) e teórico, fez, depois de 1956, carreira como “cartola”. Poucos enxadristas foram tão prestigiados na URSS quanto Averbakh. E poucos se destacaram tanto pelo puxa-saquismo. Sua ascensão coincidiu, precisamente, com o início da campanha anti-soviética – ou contra a história soviética – dentro da URSS. Que ele atualmente use o prestígio adquirido naquela época para se cacifar junto ao que há de pior na Rússia e fora dela, é apenas um desdobramento lógico de sua carreira.

O INVENCÍVEL

É interessante que o autor americano Fred Reinfeld haja escolhido para título de um de seus best-sellers enxadrísticos, “Botvinnik, o Invencível”. Pois, como o próprio Botvinnik diz acima, ele estava longe de ser invencível no tabuleiro. No entanto, ele dominou toda uma época, sem contestação, e é a isto que Reinfeld se refere, com razão. Mesmo quando Vassily Smyslov – uma rara vocação dupla, de cantor lírico e enxadrista – despontou com os melhores resultados do mundo na década de 50, Botvinnik, ao fim e ao cabo, manteve sua predominância.

O próximo match pelo título mundial foi, exatamente, entre Botvinnik e Smyslov, que saíra vencedor do Torneio de Candidatos de Zurique, em 1953. Smyslov era, como Botvinnik, um estrategista (um “jogador posicional”, como dizem os enxadristas). Era excelente tanto na defesa quanto no ataque, preciso nas aberturas e, sobretudo, nos finais de partida. Além disso, como observou Botvinnik, tinha uma capacidade especial para refutar linhas de jogo preparadas de antemão – exatamente o elemento em que o seu oponente era famoso. Em resumo, era um jogador sem as limitações de Bronstein.

Outra vez, este match, disputado em 1954, foi um empate - com Botvinnik, conseqüentemente, retendo o título de campeão. Mas esteve longe de ser um match monótono. Nas seis primeiras partidas, Botvinnik tinha 3 vitórias contra nenhuma de Smyslov. Nas cinco partidas seguintes, Smyslov venceu 4 vezes. Ficou, portanto, um ponto acima do campeão. Então, nas próximas 5 partidas, Botvinnik venceu 4 delas – e ficou dois pontos à frente do desafiante. Porém, à beira do esgotamento, perdeu a 20ª e a 23ª partidas, e a decisão foi para a última partida do match – mas esta foi um empate, e, com 7 vitórias para cada um, o match de 24 partidas também terminou empatado, com Botvinnik mantendo-se campeão.

Porém, Smyslov venceu outra vez o Torneio de Candidatos (Amsterdã, 1956). E, no match de 1957, “a luta transcorreu com êxitos de um lado e de outro, mas depois não agüentei a dura prova, e V. Smyslov conquistou com brilhantismo o título de campeão. (....) No período 1953-1958, Smyslov não conheceu a derrota; este foi o cume de sua trajetória enxadrística” (Botvinnik, “Partidas Selectas”, vol. 3). A observação “não aguentei a dura prova” é uma referência de Botvinnik à sua idade: tinha 46 anos e Smyslov, 36. Dez anos de diferença na idade, num match de 24 partidas, são um peso difícil de neutralizar (em 1957, Botvinnik não chegou até a última partida - Smyslov, com 12,5 pontos contra 9,5, conquistou o título na 22ª partida).

Mas, como já vimos, ele ganhou o match-revanche em 1958. Continuava insuperável na preparação teórica e psicológica, em especial na análise do estilo e das características do oponente.

Apenas um ano depois, no Congresso da FIDE, o campeão mundial seria surpreendido por uma decisão que explodiu no mundo do xadrez como uma bomba. A FIDE aprovou o que a revista inglesa “Chess” chamou de “a regra anti-Botvinnik” - com o apoio, para surpresa ainda maior de Botvinnik, da delegação soviética. Mas deixemos isso para a próxima edição, que o nosso espaço, por hoje, está no fim.
Carlos Batista Lopes.

PESQUISADO E REVISADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).
REFERÊNCIA:
http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias05.htm